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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

‘Conservadores também têm o dever se opor ao genocídio’

Entrevista com Ualid Rabah, presidente da FEPAL sobre mídia, opinião pública e Palestina
Ualid Rabah, Presidente da FEPAL- Federação Árabe Palestina do Brasil [Acervo Fepal]

À medida que nos aproximamos de um ano de genocídio na Palestina, é essencial refletir sobre como a comunicação tem moldado a percepção pública e como as mídias têm abordado a situação. A entrevista com Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe Palestina, oferece uma perspectiva crítica sobre essas questões, destacando a evolução da percepção pública no Brasil e a resposta dos veículos de comunicação. Ualid explora o impacto da comunicação alternativa e independente, a importância de uma linguagem direta e a necessidade de uma análise mais profunda sobre o papel da mídia hegemônica e independente. Além disso, discute os desafios futuros na manutenção da visibilidade da causa palestina e a necessidade urgente de enfrentar a desinformação.

Antes, poucas pessoas estavam cientes da atual situação da ocupação. Você acredita que, hoje, essa percepção mudou com o tipo de comunicação que estamos fazendo?

Eu acho, ou melhor, desconfio que essa situação que está sendo mostrada deu um choque de realidade em algumas pessoas. Para alguns, foi um choque; para outros, uma evolução pela experiência. É uma mistura. Eu desconfio que isso fez as pessoas entenderem, primeiro, o imperialismo; segundo, o colonialismo; e, então, começaram a compreender o sionismo. As pessoas nunca debateram isso antes. Nunca questionaram o apartheid. Nunca precisaram debater genocídio. Quando aconteceu o genocídio em Ruanda, você acha que alguém debateu isso no Brasil? Essas questões não são próprias do ocidente, no nosso “mundo” assim chamado, e nunca foram debatidas. E, com tudo o que essas mídias hegemônicas estão fazendo, a Globo e as grandes mídias, com seu grande poder político,  ainda assim, 70% da opinião pública brasileira, segundo uma pesquisas recente, são contra o genocídio. Isso não é pouca coisa. Quantos estão a favor do genocídio? Não chegam a 30%.  Se sobrou algo para ficar com Israel, são 15%, que é o tamanho da demografia da extrema-direita. Então, eu diria que a gente deveria aprender com isso.

Como e o que aprendemos com essa situação?

Deveríamos contratar uma pesquisa de opinião pública, dessas qualitativas, para que sejamos orientados pelo menos por um ano. Queremos saber, primeiro, o que a opinião pública entende sobre os palestinos no Brasil. O que é resistência para eles? O que é o Hamas para eles? Ainda precisamos entender algumas coisas. E esse é o desafio na próxima jornada da FEPAL: organizar algo que já era plano para este último ano. É organizar uma escola de formação, organizar o instituto, visitar as comunidades, diagnosticar qual é o problema que elas estão enfrentando hoje.

Como o genocídio está repercutindo na mídia brasileira e como e quais grupos de comunicação responderam ao chamado institucional da Federação Árabe Palestina (FEPAL)?

Grosso modo, a Globo foi a única que não respondeu de forma alguma, nem em qualquer uma das maneiras públicas possíveis. Absolutamente não houve resposta. Os demais veículos de comunicação têm diferentes níveis de resposta. Por exemplo, a Band: ela respondeu de forma melhor. O SBT deu outra entrada, mas manteve-se na locução hegemônica; e a Record fez da pior maneira possível, usando a religião etc. E aí, temos uma coisa nova que acho que não está sendo levada em conta: o quanto os veículos não-hegemônicos são capazes de “virar a chave”.

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A virada de chave do nosso discurso começou com uma entrevista ao Zé Reinaldo no próprio dia 7 de outubro de 2023. O 247 e o ICL nos deram muito protagonismo, por exemplo. E todos os demais veículos não-hegemônicos, a Revista Fórum, GGN, Ópera Mundi e o Clandestino… tudo isso tem uma capacidade de atingir um público que não estava sendo abastecido com informações adequadas. Então, o campo democrático popular – ao menos um terço da opinião pública brasileira, em momentos ideais – não estava sendo abastecido com informações para replicar, para ser ativista da causa. Agora, um número muito significativo está pronto para essa missão.

Você acredita que após quase um ano de genocídio, as mídias independentes de alguma forma alteraram a opinião pública?

Nos primeiros dias do genocídio territorializado em Gaza, o campo democrático popular ficou nas cordas e não conseguiu entender o que estava acontecendo. Entendeu primeiro que teve uma avalanche de fake news. Entendeu que houve um ataque terrorista, mesmo que as fake news já tivessem sido desmentidas. E aí veio aquela loucura. Foi uma locução precisa que rapidamente educou esse grupo social, demográfico e político. E claro, quando eles (as mídias) reagem, reagem em bloco. Fazem o outro bloco refluir. Nos primeiros dias do genocídio, as informações que nós temos indicam que 30% da população brasileira, consultada em pesquisa de opinião, disse que o Brasil deveria ficar ao lado do povo palestino. Outros 30% ficaram com Israel, e 40% disseram que o Brasil deveria se manter neutro.

Qualquer análise naquele momento mostrava que, com 30% de apoio, o discurso deles estava sendo dominante. Eles “eram as vítimas” de um genocídio – uma loucura! A Globo, os demais veículos hegemônicos, o Congresso pegando fogo, políticos fazendo discursos nas Câmaras de vereadores… ainda assim, eles tinham 30%. Agora, a demografia pentecostal mais radicalizada – aquela que obedece a um deus étnico para matar – tem ao menos de 10 a 15% de apoio. E nós, com 30%, apesar de tudo. Não quer dizer que o restante dos 40% estejam do lado de lá, se fossem forçados a escolher, escolheriam o lado de cá. E é por isso que hoje estamos com 70% contra o genocídio. Não quer dizer que 70% são a favor do nosso discurso, mas são contra o extermínio.

É como se tivéssemos o nazismo acontecendo hoje, televisionado, com câmaras de gás, e as pessoas precisassem escolher um lado. Isso prova outra coisa: estamos acertando. Diante de um genocídio, não há esquerda ou direita. Você pode precisar educar seu público, sim, e fazer a costura do seu discurso, mas não deve ignorar o conservador só porque ele é conservador. Ele também tem o direito de se opor ao genocídio, e mais que isso – tem o dever. Quando eu digo “direito”, quero dizer que você não pode dizer: “porque você pensa assim, não pode se opor”. Nosso discurso foi construído para atingir todas as pessoas. Isso é uma virtude.

Como você avalia a eficácia do discurso contra o genocídio na Palestina e a importância de incluir diferentes ideologias nesse debate?

Os veículos hegemônicos quiseram nos colocar no gueto, mas nós dissemos “não vamos ficar no gueto, vamos falar com a população brasileira que é contra o genocídio”. E deu certo. Esse processo foi educativo: primeiro, você precisa decidir falar; segundo, decidir como falar. Qualificar o genocídio. Se você não qualifica e quantifica a palavra genocídio, as pessoas não entendem o que significa. Você precisa qualificar o termo, mostrar o que significa e explicar o porquê. Quando falamos de genocídio, estamos falando da tentativa de exterminar um povo. Agora, são perto de 9.600 crianças assassinadas por milhão de habitantes em Gaza. Durante toda a Segunda Guerra Mundial, que durou seis anos, foram 2.813 por milhão. Ou seja, 6.2 vezes mais do que na Segunda Guerra.

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Então, você pode começar a discutir o extermínio de mulheres, o que significa 300% de aumento nos abortos involuntários, ou o que significa ter uma infraestrutura hospitalar incapaz de tratar um câncer. Isso significa milhares de mortos, incluindo mulheres grávidas. Essa é a dimensão do que estamos falando. É isso que desafia o discurso sionista.

E quanto a perseguição midiática e das redes sociais quanto aos que se posicionaram contra o genocídio?

Você deve se lembrar que todas as pessoas que defenderam a questão Palestina foram perseguidas. Foram perseguidos políticos, homens públicos de toda natureza, jornalistas, intelectuais, acadêmicos, artistas, ativistas, militantes – todos foram perseguidos, mas, mesmo assim continuamos falando. As pessoas estão falando abertamente sobre nacionalismo, estão falando abertamente sobre Israel, e começam a cobrar, com muita justiça, o porquê do silêncio dos judeus. Isso não era possível antes, então é uma evolução.

Até o momento, segundo dados do Sindicato de Jornalistas Palestinos (PJS) temos só no território palestino – desconsiderando Líbano e Israel – 165 jornalistas assassinados. O que isso representa?

Se pegarmos o número de 69 jornalistas mortos durante a Segunda Guerra Mundial e compararmos com os 165 de agora, primeiro multiplicamos o número pela diferença demográfica. A Europa durante a Segunda Guerra tinha uma população 240 vezes maior que a de Gaza hoje. Então, ao multiplicar por 240, e considerando que estamos tratando de um período seis vezes menor, é preciso multiplicar também por essa fração de tempo. Vamos calcular: 165 vezes 240, e depois dividimos pelo fator de tempo de seis anos. Isso nos mostra que, proporcionalmente, o número de jornalistas assassinados hoje na Palestina é 3.443 vezes maior do que durante todo o período nazista. Essa é a conta que precisamos fazer, porque não podemos ignorar o contexto demográfico e temporal dessa comparação.

Segundo dados do SJP, em 2023, durante apenas três meses de guerra – outubro, novembro e dezembro – 62,5% dos jornalistas mortos no mundo foram assassinados na Palestina, excluindo as vítimas no Líbano e Israel. No mesmo ano, o total global de jornalistas mortos chegou a 120. Em 2024, embora o número total de jornalistas assassinados tenha diminuído no mundo, o percentual de mortes na Palestina aumentou drasticamente, atingindo 80,6%. Portanto, enquanto o número global de jornalistas assassinados cai, o percentual na Palestina dispara. Essa tendência é clara: jornalistas palestinos estão e são – desde sempre – alvos diretos desse genocídio continuado. A pergunta que se faz é: por que os jornalistas palestinos estão sendo sistematicamente eliminados? E como essa realidade tem sido reportada pelos colegas brasileiros?

Isso não está sendo comunicado adequadamente. Estamos falando de comunicação, e tudo isso está sendo escondido, mas também apoiado pela mídia ocidental, por jornalistas e editores do Ocidente. Estamos testemunhando a maior matança de jornalistas da história humana, um marco que dificilmente será superado. Isso está acontecendo porque há uma decisão consciente de matar esses jornalistas. A Globo e Israel estão envolvidos nisso, Israel executa, mas (a cobertura da) Globo é responsável por esses assassinatos.

Estávamos falando sobre como a mídia independente e alternativa assumiu o controle da situação e, junto com a mensagem emitida pela FEPAL, invertemos a polarização contra o discurso da grande mídia. Como isso foi possível? 

Há um grupo de estudos sobre mídia na Universidade Federal Fluminense. O coordenador do grupo me enviou uma mensagem e disse “vocês furaram a bolha”. Ele destacou que a narrativa correta ajudou a furar a bolha. Isso é uma área que ainda precisa ser pesquisada.

Fizemos um levantamento sobre nossas mídias no dia 23 do mês passado, em agosto. Desde o dia 7 de outubro, tivemos 186,4 milhões de impressões no X – um número absurdamente alto. No Instagram, a métrica é mais precisa, e conseguimos alcançar quase 9 milhões de contas no mesmo intervalo de tempo.

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De acordo com dados de final de 2023, o Brasil tinha 113 milhões de contas no Instagram. Algumas dessas contas estão inativas e é necessário filtrar essas informações. Além disso, é preciso considerar as contas que lidam com temas políticos e sociais para avaliar como estamos atingindo o nosso público. Pegando os 113 milhões de contas, teríamos alcançado cerca de 7% do total, mas, como alcançamos quase 9 milhões de contas, isso corresponde a aproximadamente 8% do total. Se reduzirmos para 50 milhões, que é uma estimativa mais realista para contas engajadas com temas sociais e políticos, teríamos alcançado cerca de 18%, quase 20%, o que é bastante significativo.

Ainda precisamos entender o quanto esse alcance foi determinante na construção da narrativa no Brasil. Mantivemos uma linha de discurso consistente e não alteramos nossa posição em nenhum momento. Isso é algo que precisamos aprender melhor. Estamos satisfeitos com os resultados, mas sabemos que ainda há muito a fazer.

Quais os próximos passos da comunicação na atual fase desse genocídio?

O último desafio que gostaria de mencionar é que, após a onda de sangue acabar, precisamos garantir que o discurso continue e que nossa atuação persista. Precisamos manter o apartheid e o projeto colonial sob pressão, continuar falando sobre o genocídio e exigir que o Brasil tome uma posição. Esse é um desafio. É importante fazer uma leitura política sincera e honesta sobre nossa capacidade de manter a agenda Palestina em pauta e a defesa da causa. A pergunta dolorosa é como manter a relevância e o engajamento após a normalização do cenário. Precisamos avaliar como a juventude e o campo democrático popular reagirão e se continuarão engajados. É uma questão importante a ser considerada para o futuro.

No artigo 19, eu exploro a teoria de que toda a luta, todo o discurso e todos os esforços feitos até agora nos levariam ao ponto em que estamos vivendo atualmente no Brasil. Isso inclui o problema das redes sociais como disseminadora de desinformação e a necessidade da regulamentação da internet e das mídias sociais. Um exemplo disso é a reação ao comportamento de Elon Musk, que, embora não represente um progresso gigantesco, é uma resposta significativa. Vejo isso como o fim de um ciclo. Estou interessado em saber como você vê institucionalmente essa regulamentação e a resposta ao X, especialmente com a restrição aqui no Brasil? 

Questiono por que o X adota uma postura política específica, permitindo que seu proprietário dê ordens e influencie a informação. No Brasil, isso reflete o que o Departamento de Estado gostaria de dizer, mas não pode. O que me chama a atenção é o surgimento de um novo tipo de totalitarismo, que busca o domínio total da informação. O X, por exemplo, permite que informações verdadeiras sejam divulgadas, mas também é um grande fabricante de fake news. Gradualmente, a plataforma se tornou um centro de disseminação de desinformação. Por outro lado, a Meta, com suas plataformas como Facebook e Instagram, manifesta um tipo diferente de totalitarismo. Eles censuram e restringem conteúdos que não se alinham com suas agendas hegemônicas e imperialistas.

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Estamos diante de um genocídio, e a Meta censura informações sobre isso, justificando que certas imagens ferem a sensibilidade. Isso levanta a questão: seria aceitável exibir imagens de câmaras de gás na Meta? Parece que a Meta propaga apenas o que é hegemônico e imperialista, enquanto restringe tudo o que é contrário a isso. É necessário examinar essa dinâmica com mais atenção.

Esse totalitarismo também se reflete em outras áreas, como o Google, onde pesquisas são cada vez mais limitadas e higienizadas. Em resumo, enfrentamos um sistema ocidental que precisa ser desafiado e examinado criticamente.

O uso de técnicas para contornar a censura nas redes, como a substituição de termos como “Hamas, genocídio e sionismo” por espaçamentos ou números, pode tanto influenciar a percepção do público quanto destacar a censura. No Clandestino, adotar a escrita direta – como “assassinato de jornalistas”, em vez de eufemismos como “mortes de jornalistas” – é um ato de resistência que desafia a narrativa dominante e redefine a realidade. Qual é a posição da FEPAL sobre a alteração da grafia?

Sabe que algumas coisas estão pegando, por exemplo, escrever “israel” entre aspas e tudo em minúsculo. Isso já está sendo adotado por muita gente. A gente começou a adotar essa prática e não escreve “israel” com letra maiúscula. “Autoproclamação” é outra; há até teses de doutorado sobre isso. Não cedemos e mantemos as coisas como devem ser escritas. Continuamos usando o termo “genocídio continuado” porque o que está acontecendo atualmente é apenas uma fase do genocídio localizada.

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Palestina: quatro mil anos de história
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