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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

A decisão de Trump sobre Golã e a narrativa de ‘resistência’ no Oriente Médio

Presidente dos Estados Unidos Donald Trump e Primeiro-Ministro de Israel Benjamin Netanyahu apresentam à imprensa a proclamação executiva de Trump em reconhecimento da soberania israelense sobre as Colinas de Golã, após encontro na Casa Branca, Washington DC, 25 de março de 2019 [Alex Wong/Getty Images]

Em discurso televisionado na terça-feira (26 de março), o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, mencionou o reconhecimento de Trump da soberania israelense sobre as Colinas de Golã como “um ponto de inflexão crucial na história do conflito árabe-israelense”, que “desfere um golpe fatal” nos prospectos de paz na região.

Nasrallah acrescentou que o movimento prova que “resistência, resistência e resistência” é o único caminho para recuperar as terras ocupadas por Israel e manter o estado sionista em cheque. O movimento americano, sem dúvida, cabe como uma luva à narrativa daqueles que desejam contrapor o heroísmo da resistência árabe diante da agressão israelense. No entanto, a história nos conta algo diferente.

Após a devastadora derrota na Guerra dos Seis Dias em 1967 — que levou à ocupação mantida até hoje — os estados árabes, na prática, nada fizeram para mudar a situação em solo. De fato, 1967 pode ser considerado como um ponto de virada na história moderna da política árabe, pois testemunhou um distanciamento lento, porém definitivo, até o ponto vigente, em relação às prioridades políticas dos jovens estados árabes de então: isto é, a vitória sobre Israel.

Mesmo a Síria, que manteve uma orientação aparentemente hostil a Israel e aos projetos americanos na região, cultivou prioridades voltadas ao plano doméstico, fundamentalmente concentradas na sobrevivência do regime. No caso sírio, 1967 pode ser considerado como símbolo do momento fundador do contexto político que levou ao período de governo da família Assad, no poder até hoje.

A ocupação das Colinas de Golã tornou-se útil para dois propósitos particulares. Primeiro, ao evocar Golã como meio de preservar alguma forma de legitimidade popular, pois o apoio contra a ocupação israelense continuou intenso dentre a população. Segundo, e mais importante, a ininterrupta ocupação israelense de Golã serviu como artifício prático para embasar a sobrevivência do regime.

Em 1967, o Ministro da Defesa da Síria Hafez Al-Assad demonstrou um papel instrumental na perda do território de Golã para Israel. De fato, foi essa derrota que serviu de estímulo indispensável a Assad para reprimir toda e qualquer oposição que buscasse questioná-lo sobre sua participação no problema.

De acordo com o intelectual sírio Yassin Al-Haj Saleh, “o intento de Hafez Al-Assad em afastar-se da responsabilidade sobre essa derrota tornou-se o coração da tirania instalada por ele nas décadas seguintes”. Ele acrescenta que a permanência deste domínio da dinastia política construída por Assad é “suficiente para demonstrar que vivemos realidade políticas organicamente ligadas à derrota de junho, realidades que, desde então, são continuamente reproduzidas e generalizadas como resultado desta mesma correlação.”

Conforme a altamente divulgada (embora não confirmada) narrativa sobre o evento, Hafez Al-Assad “vendeu” as Colinas de Golã a Israel através de um acordo secreto, em troca de apoio velado israelense ao seu regime. Naji Mustafa, porta-voz do grupo de oposição sírio Frente de Libertação Nacional (FLN), reiterou essa versão da história ao conversar com a Agência Anadolu, onde insistiu que “o regime não desejava retomar Golã em momento algum… Ao contrário, instrumentalizou a questão, na forma de uma ‘ameaça estrangeira’, para reprimir o seu próprio povo”.

Embora essa reivindicação de que Assad vendeu Golã a Israel jamais tenha sido empiricamente confirmada, é evidente que não houve qualquer tentativa séria para retomar o território, seja por meio de força ou diplomacia. Mesmo a fracassada campanha na chamada “Guerra do Yom Kippur”, em 1973, pode ser vista como uma tentativa desastrosa na melhor das hipóteses, e uma sabotagem deliberada na pior das hipóteses, quanto aos supostos objetivos de recuperar o território ocupado. Isso se agrava pela narrativa de que Hafez Al-Assad foi o responsável por convencer o Presidente egípcio Anwar Sadat a mover suas tropas na Península do Sinai para além da cobertura das forças de defesa anti-aéreas.

Por um lado, portanto, o reconhecimento americano do que é factualmente a soberania de Israel sobre Golã desde 1967 é deveras insignificante. Por outro lado, e com uma ironia aparentemente despercebida pelas multidões cegas pelo delírio de um “Grande Israel”, este movimento pode obstruir os objetivos estratégicos de médio prazo das gestões Trump e Netanyahu na região, isto é, isolar o Irã por meio de uma aliança entre Israel e os estados árabes – principalmente, os estados do Golfo.

Diante da decisão de Trump, os estados do Golfo foram unânimes em rejeitar a ideia de soberania israelense sobre o território ocupado, reafirmando que Golã permanece síria e árabe. Devido seu caráter fundamentalmente retórico, embora esperado, essa resposta parece sugerir alguma possibilidade de retorno a um flerte público gradativo entre Israel e os líderes dos estados árabes – em particular, a Arábia Saudita sob autoridade do príncipe-herdeiro Mohamed Bin Salman.

Desde o assassinato do jornalista dissidente Jamal Khashoggi, surgiram relatos de uma divisão crescente entre o Rei Salman e seu filho, incluindo a retomada de poderes monárquicos no que concerne a questões-chave da política internacional, como aquelas relacionadas a Israel e Palestina. Um documento publicado no ano passado indica a existência de intervenções do rei saudita para tentar reparar o dano feito pelas ações de seu filho – um dos maiores exemplos é o apoio do rei ao “acordo do século” promovido por Donald Trump.

Além disso, a reação à declaração de Golã tem atraído repúdio não somente da região, mas do mundo inteiro, indicando uma oposição decisiva – em particular, dos estados mais vulneráveis – à maior degradação das regras e leis estabelecidas pela ordem internacional.

Uma decisão aparentemente tomada no interesse da política doméstica dos Estados Unidos e de Israel irá provavelmente ter dois efeitos possíveis. Primeiro, servirá como catalisador à unidade dos agentes locais, incluindo poderosos atores não-estatais como o Hezbollah, alinhados à narrativa de “resistência” e a sua justificativa cada vez mais ampla e transparente de que há uma conspiração israelo-americana na região. Segundo, servirá afinal para sabotar os próprios objetivos estabelecidos pela gestão Trump para a região, alinhados com Israel e apoiados – com distinções de grau – pelos estados do Golfo.

Por fim, a decisão de Golã, junto ao reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel e à resposta internacional a estas ações, serve para demonstrar ainda mais a posição degradada dos Estados Unidos no Oriente Médio e uma ausência de confiança internacional cada vez maior em torno das capacidades americanas de se apresentar como uma liderança global. Além do mais, aumenta a instabilidade no sistema internacional e intensifica as tensões regionais. Caso o reconhecimento de Golã não tenha oposição, o que poderemos dizer caso a Cisjordânia ocupada seja o próximo passo?

Como costuma ocorrer com bastante frequência no caso, as preocupações locais são preteridas pela geopolítica. Seja na Palestina ou em Golã, as vozes do povo local costumam ser negligenciadas. Aparentemente perdidas na discussão sobre Golã, estão as vozes da comunidade que vive sob ocupação israelense por mais de 50 anos. Qualquer conversa sobre “resistência” somente pode ser legitimada se apoiar as ações de liderança local. Caso os atores regionais desejem combater a conjuntura, só poderão fazê-lo se legitimados pelo apoio da população sob ocupação, de outro modo, a narrativa será dominada por aqueles que almejam explorar a situação como investimento para seus próprios interesses escusos.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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