Por que pessoas habitualmente boas cometem atos cruéis? Muitos foram atormentados pela pergunta, mas a resposta é tão imprecisa agora quanto era em seu surgimento, em muitas histórias fundadoras de tradições e culturas religiosas que também se depararam com a questão da violência.
A famosa filósofa alemã e teórica política, Hannah Arendt, ofereceu a mais conhecida, se não a melhor, explicação contemporânea de por que as pessoas cometem atos de maldade, ao investigar a questão da violência no recorte do fascismo.
O trabalho de Arendt, focado na questão perene da razão pela qual pessoas habitualmente boas cometem atos de grande mal, mereceu aclamação global. Embora tenha escrito dezenas de livros e artigos, a sobrevivente do Holocausto talvez seja mais famosa por uma única linha perceptiva sobre o mal do que os muitos volumes que ela escreveu, compreendendo a natureza da violência política: “A banalidade do mal”.
Arendt cunhou o termo em seu relatório sobre o julgamento de crimes de guerra de Adolph Eichmann, agente nazista responsável por organizar o transporte de milhões de judeus e outros para vários campos de concentração em apoio à chamada Solução Final. Arendt descobriu que Eichmann era um burocrata comum e insípido que, nas palavras dela, não era “nem pervertido nem sádico”, mas “terrivelmente normal”.
O que Arendt capturou, talvez melhor do que a maioria, é que o crime contra a humanidade se tornou, em certo sentido, “banal”, rotinizado. Com o tempo, tais crimes foram implementados sem repulsa moral, indignação política ou sequer enfrentavam qualquer forma de resistência. A conseqüência foi o assassinato em massa e o genocídio. Uma interpretação possível que se popularizou razoavelmente sugere que, dentro de cada ser humano e em toda comunidade política, se escondiam os germes do fascismo capazes de gestar um monstro.
Ouvindo os ex-soldados da Guerra Civil Libanesa entrevistados para o documentário de longa-metragem, “About a War” (“Sobre uma Guerra”, em tradução livre), a representação de Arendt de “mal” como algo “banal” aparece aos gritos. Os espectadores são confrontados com questões sobre a natureza do mal e da violência política, através do testemunho de pessoas que lutaram entre si na brutal guerra civil. A jornada de um ex-soldado em particular, que era membro das falanges libanesas, é particularmente impressionante nesse sentido.
A figura do chefe da inteligência da falange libanesa é um dos três personagens do documentário, realizado por dois cineastas, Daniele Rugo e Abi Weaver. Eles decidiram responder às perguntas: O que obriga alguém a pegar armas e lutar? Nós dois podemos matar em um conflito civil e lamentar? O que acontece quando a guerra acaba?
Embora essas questões tenham o objetivo dar coerência ao filme, Rugo e Weaver produzem um documentário que supera as expectativas, aumentando nossa compreensão de porque pessoas boas cometem atos de extrema violência.
O poderoso testemunho do membro da Falange Libanesa, Assad, traça sua jornada: de um jovem que se une às forças armadas para lutar contra muçulmanos e palestinos, os quais foi levado a acreditar serem “traidores” e “de fato diferentes social e politicamente”, até a sua percepção de que havia se tornado um “monstro”, tornando-se cúmplice no massacre de Sabra e Chatila, onde cerca de 3.000 palestinos foram mortos.
Assad testemunha sobre seu papel para que o exército israelense e a coordenação do exército libanês, com os serviços de inteligência de Israel, desequilibrassem a resistência palestina, coletando dados sobre suas reservas estratégicas, como combustível. Como oficial da inteligência, ele disse que sabia tudo sobre os campos palestinos, incluindo quanto de farinha eles tinham em estoque e por quanto tempo poderiam manter um cerco sem matar os palestinos. Seu papel, explicou Assad, era aplicar pressão suficiente sobre o líder palestino Yasser Arafat e seu povo, para que eles deixassem o Líbano.
Soldados libaneses montam guarda na fronteira Líbano-Síria com veículos blindados, depois que a operação “Dawn of the Mountains” (Despertar das Montanhas), contra o Daesh foi concluída, em 28 de agosto de 2017 [Muhammed Ali Akman/Agência Anadolu]
Cerca de 250.000 pessoas morreram e mais um milhão foram deslocadas em uma guerra civil que durou 15 anos. Quando a guerra começou em 1975, era somente um conflito entre duas partes: de um dos lados estavam as milícias de direita falangistas cristãs. Eles foram inspirados por Franco e o Fascismo em geral, como explica um especialista no documentário, e defendiam o que consideravam os direitos dos cristãos libaneses. Eles se opunham ao envolvimento do Líbano no conflito árabe-israelense e à presença da OLP em seu país. O outro lado consistia de grupos palestinos, comunistas libaneses e esquerdistas e grupos muçulmanos sunitas resistindo à ocupação israelense.
O documentário consegue retratar a brutalidade do conflito libanês sem cair na armadilha de muitos documentários de guerra que fetichizam a violência de uma maneira desnecessária, na tentativa de criar o impacto que os cineastas buscam. Rugo e Weaver disseram que queriam explorar como esses homens, adolescentes, foram mobilizados pela primeira vez e como e por que pegaram uma arma pela primeira vez e depois continuaram lutando por 15 anos. O filme também explorou o destino dos combatentes assim que a luta terminou e seus esforços para lidar com a percepção de suas ações e papéis como parte de um sistema de violência.
Rugo e Weaver produziram um documentário que vai além de sua expectativa inicial. “About a War” fala poderosamente sobre uma questão universal dos ciclos de violência, enquanto esclarece por que as pessoas boas cometem atos de grande mal.
O filme “About a War” está agora em cartaz no cinema Curzon Soho, em Londres, Inglaterra.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.
Sobre uma guerra
Por que pessoas habitualmente boas cometem atos cruéis? Muitos foram atormentados pela pergunta, mas a resposta é tão imprecisa agora quanto era em seu surgimento, em muitas histórias fundadoras de tradições e culturas religiosas que também se depararam com a questão da violência.
A famosa filósofa alemã e teórica política, Hannah Arendt, ofereceu a mais conhecida, se não a melhor, explicação contemporânea de por que as pessoas cometem atos de maldade, ao investigar a questão da violência no recorte do fascismo.
O trabalho de Arendt, focado na questão perene da razão pela qual pessoas habitualmente boas cometem atos de grande mal, mereceu aclamação global. Embora tenha escrito dezenas de livros e artigos, a sobrevivente do Holocausto talvez seja mais famosa por uma única linha perceptiva sobre o mal do que os muitos volumes que ela escreveu, compreendendo a natureza da violência política: “A banalidade do mal”.
Arendt cunhou o termo em seu relatório sobre o julgamento de crimes de guerra de Adolph Eichmann, agente nazista responsável por organizar o transporte de milhões de judeus e outros para vários campos de concentração em apoio à chamada Solução Final. Arendt descobriu que Eichmann era um burocrata comum e insípido que, nas palavras dela, não era “nem pervertido nem sádico”, mas “terrivelmente normal”.
O que Arendt capturou, talvez melhor do que a maioria, é que o crime contra a humanidade se tornou, em certo sentido, “banal”, rotinizado. Com o tempo, tais crimes foram implementados sem repulsa moral, indignação política ou sequer enfrentavam qualquer forma de resistência. A conseqüência foi o assassinato em massa e o genocídio. Uma interpretação possível que se popularizou razoavelmente sugere que, dentro de cada ser humano e em toda comunidade política, se escondiam os germes do fascismo capazes de gestar um monstro.
Ouvindo os ex-soldados da Guerra Civil Libanesa entrevistados para o documentário de longa-metragem, “About a War” (“Sobre uma Guerra”, em tradução livre), a representação de Arendt de “mal” como algo “banal” aparece aos gritos. Os espectadores são confrontados com questões sobre a natureza do mal e da violência política, através do testemunho de pessoas que lutaram entre si na brutal guerra civil. A jornada de um ex-soldado em particular, que era membro das falanges libanesas, é particularmente impressionante nesse sentido.
A figura do chefe da inteligência da falange libanesa é um dos três personagens do documentário, realizado por dois cineastas, Daniele Rugo e Abi Weaver. Eles decidiram responder às perguntas: O que obriga alguém a pegar armas e lutar? Nós dois podemos matar em um conflito civil e lamentar? O que acontece quando a guerra acaba?
Embora essas questões tenham o objetivo dar coerência ao filme, Rugo e Weaver produzem um documentário que supera as expectativas, aumentando nossa compreensão de porque pessoas boas cometem atos de extrema violência.
O poderoso testemunho do membro da Falange Libanesa, Assad, traça sua jornada: de um jovem que se une às forças armadas para lutar contra muçulmanos e palestinos, os quais foi levado a acreditar serem “traidores” e “de fato diferentes social e politicamente”, até a sua percepção de que havia se tornado um “monstro”, tornando-se cúmplice no massacre de Sabra e Chatila, onde cerca de 3.000 palestinos foram mortos.
Assad testemunha sobre seu papel para que o exército israelense e a coordenação do exército libanês, com os serviços de inteligência de Israel, desequilibrassem a resistência palestina, coletando dados sobre suas reservas estratégicas, como combustível. Como oficial da inteligência, ele disse que sabia tudo sobre os campos palestinos, incluindo quanto de farinha eles tinham em estoque e por quanto tempo poderiam manter um cerco sem matar os palestinos. Seu papel, explicou Assad, era aplicar pressão suficiente sobre o líder palestino Yasser Arafat e seu povo, para que eles deixassem o Líbano.
Soldados libaneses montam guarda na fronteira Líbano-Síria com veículos blindados, depois que a operação “Dawn of the Mountains” (Despertar das Montanhas), contra o Daesh foi concluída, em 28 de agosto de 2017 [Muhammed Ali Akman/Agência Anadolu]
Cerca de 250.000 pessoas morreram e mais um milhão foram deslocadas em uma guerra civil que durou 15 anos. Quando a guerra começou em 1975, era somente um conflito entre duas partes: de um dos lados estavam as milícias de direita falangistas cristãs. Eles foram inspirados por Franco e o Fascismo em geral, como explica um especialista no documentário, e defendiam o que consideravam os direitos dos cristãos libaneses. Eles se opunham ao envolvimento do Líbano no conflito árabe-israelense e à presença da OLP em seu país. O outro lado consistia de grupos palestinos, comunistas libaneses e esquerdistas e grupos muçulmanos sunitas resistindo à ocupação israelense.
O documentário consegue retratar a brutalidade do conflito libanês sem cair na armadilha de muitos documentários de guerra que fetichizam a violência de uma maneira desnecessária, na tentativa de criar o impacto que os cineastas buscam. Rugo e Weaver disseram que queriam explorar como esses homens, adolescentes, foram mobilizados pela primeira vez e como e por que pegaram uma arma pela primeira vez e depois continuaram lutando por 15 anos. O filme também explorou o destino dos combatentes assim que a luta terminou e seus esforços para lidar com a percepção de suas ações e papéis como parte de um sistema de violência.
Rugo e Weaver produziram um documentário que vai além de sua expectativa inicial. “About a War” fala poderosamente sobre uma questão universal dos ciclos de violência, enquanto esclarece por que as pessoas boas cometem atos de grande mal.
O filme “About a War” está agora em cartaz no cinema Curzon Soho, em Londres, Inglaterra.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.
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