O Estado israelense e seus partidários frequentemente acusam seus críticos de serem motivados por antissemitismo, e embora eles mesmos admitam que não é inerentemente antissemita criticar Israel, controvérsias recentes demonstraram que é bastante difícil determinar precisamente onde críticas genuínas terminam e onde o racismo começa.
Um método popular para solucionar esse problema é o chamado “teste 3D” – o “Três Ds do antissemitismo” – desenvolvido pelo ex-ministro de Assuntos Internos de Israel, Natan Sharansky. Esse sistema avalia a crítica de Israel contra três “Ds”, ou seja: demonização, quando “as ações de Israel excedem todas as proporções sensíveis”; duplos padrões, quando Israel é “discriminado” ou a crítica é “aplicada seletivamente”; e deslegitimação, quando “o direito fundamental de existir de Israel é negado”. Caso uma afirmação crítica atenda a algum desses critérios, então será designada como antissemita.
Este teste foi promovido conforme a retórica da Liga Anti-Difamação dos EUA como uma maneira simples de distinguir a crítica “anti-Israel” do antissemitismo; contudo, é insuficiente em ao menos um tópico relevante: seus padrões podem ser facilmente aplicados ao discurso sobre outros países além de Israel. De fato, os “3 Ds” espelham as contestações enunciadas por defensores do apartheid na África do Sul nos anos 1970 e 1980, que também acreditavam que seu país, embora privilegiado, estaria sujeito a críticas injustas.
Uma breve perspectiva sobre a propaganda pró-apartheid sul-africana revela acusações comparáveis de demonização, duplos padrões e deslegitimação. Longe de fornecer uma ferramenta confiável para análise, o “teste 3D” de Sharansky apenas codifica a mesma retórica utilizada historicamente para defender o apartheid na África do Sul, ao dissimular a linguagem dos estados párias em suposta evidência de antissemitismo.
Demonização
Glenn Babb, embaixador sul-africano no Canadá entre 1985 e 1987, costumava criticar a “retórica exagerada” utilizada contra o seu país. Ele achava que a África do Sul sofria “difamação” no debate público e que seus críticos estavam cheios de uma “ignorância lúgubre”. Babb afirmou que o governo canadense chegou a conspirar com grupos “anti-África do Sul” e com o Congresso Nacional Africano (CNA) para arquitetar toda uma atitude hostil em relação ao estado do apartheid; o embaixador se referia a esse “relacionamento incestuoso” como “indústria anti-África do Sul”.
Os defensores da África do Sul costumavam reclamar que o país era representado de um ponto de vista absolutamente negativo e unilateral; culpavam a “tendenciosa mídia liberal” por repetir a desinformação sem críticas aos “terroristas” e “marionetes” da União Soviética, como o CNA, e por convencer o público de que o apartheid era excepcionalmente maligno. De fato, argumentavam que a cobertura tendenciosa da mídia desencadeou respostas emocionais à custa de análises racionais, envenenando qualquer possibilidade de debate construtivo.
John Shingler, professor da Universidade McGill e também diretor de um grupo de elite pró-África do Sul, escreveu que os debates no campus sobre o desinvestimento sul-africano eram “desequilibrados”, “unidimensionais” e “absolutamente negativos”. Como resultado, a própria África do Sul como país havia se maculado no cenário internacional (e não somente suas políticas). Segundo ele, o processo teria dois efeitos principais: a mudança do tom do debate para algo “abusivo” e “estridente” e a impossibilidade de se tomar uma posição “moderada” ou se opor às sanções sem ser acusado de “racista” e “fascista”. Ao demonizar a África do Sul, costumavam afirmar, qualquer associação com o país se tornara tóxica.
Padrões duplos
Uma fulgurante revista pró-apartheid de 1987, chamada South Africa: Nation on Trial (África do Sul: Nação sob Juízo, em tradução livre) abriu com um editorial combativo afirmando que “encher de pancadas a África do Sul se tornou esporte nacional”. A revista, enviada aos cônjuges de parlamentares canadenses, reclamava que “a África do Sul é julgada por padrões duplos, triplos e até quádruplos. Muitos deles são altamente subjetivos, intelectualmente inconsistentes, tendenciosos, racistas e francamente arrogantes ”.
Os defensores do apartheid na África do Sul sentiam que grande parte do Ocidente reservava certa “obsessão” em relação ao país e questionavam a atenção desproporcional recebida por governos internacionais. John Chettle, da Fundação África do Sul, criticou a “maioria implacável” na ONU que votou por aplicar “sanções ilegais” contra a África do Sul, enquanto Babb destacou a “seletividade” com a qual “o mundo escolhe a África do Sul como um caso especial.”
Muitos outros questionaram a razão pela qual os “benfeitores liberais” não boicotaram a União Soviética ou outros estados africanos. Um anúncio antissanções publicado em novembro de 1985 pelos jornais canadenses Globe and Mail e Ottawa Citizen condenou o Primeiro-Ministro Brian Mulroney por suas “ameaças unilaterais em ‘perseguição’ à África do Sul” e pelas sanções “hipócritas”. Também questionou porque o Canadá não boicotava “a ditadura marxista na Tanzânia.”
Embora as alegações de hipocrisia assumissem em grande parte uma linha ideológica anticomunista, os defensores da África do Sul ocasionalmente recorriam a outros exemplos. Por exemplo, um espectador durante um fórum público sobre a censura sul-africana em 1988, enquanto ocorria a Primeira Intifada na Palestina ocupada, observou: “O que é essa preocupação obsessiva com a África do Sul agora? Quero dizer, 200 palestinos estão sendo baleados e mortos nas ruas da Cisjordânia, vocês sabem. Espero que aproveitem essa mesma energia para trazer à luz as injustiças em Israel para o público em geral.”
Deslegitimização
“Estamos no meio de uma guerra”, afirmou o jornalista Peter Worthington em seu documentário anti-CNA de 1987, “não contra o apartheid, mas contra a própria África do Sul.”
A África do Sul jamais reservou para si um argumento exatamente equivalente ao “direito de existir” de Israel; isto é, seus partidários não alegaram que os sul-africanos brancos tivessem o direito positivo de manter o controle etnocrático sobre o estado por definição. Entretanto, argumentavam que as demandas do movimento anti-apartheid levariam à queda ou destruição violenta da própria África do Sul e, como tal, representariam uma ameaça existencial. Nisso, o lobby pró-apartheid sul-africano mobilizou uma ideia implícita de autodeterminação branca como ameaçada pela barbárie africana e marxista.
Os defensores do apartheid na África do Sul rejeitaram o chamado de “uma pessoa, um voto”, apontando para os países africanos vizinhos a fim de demonstrar que a democracia não funcionava em outras partes do continente; ao contrário, de fato seria um “fracasso cataclísmico”. McKanzie Porter, colunista do jornal Toronto Sun, culpou a “incapacidade dos negros nativos de governar bem um Estado moderno” e previu que, se o apartheid fosse desmantelado, “dentro de uma década a única nação civilizada no continente africano entraria em colapso.” Babb alertou para um “banho de sangue”. Em um artigo de página inteira para o Globe and Mail intitulado “O lado bom da África do Sul branca”, Kenneth Walker escreveu que a premissa de “uma pessoa, um voto” seria uma receita para o massacre na África do Sul.
Tais previsões eram frequentemente apocalípticas. A mais evocativa foi uma tira em quadrinhos pró-apartheid do cartunista da Disney Vic Lockman, cujo painel sobre o “cerco soviético da África do Sul” representava uma imagem de um urso gigante com foice e martelo descendo o continente africano sobre minas e fábricas sul-africanas apavoradas cercadas por todos os lados, declarando: “Vamos conduzir a África do Sul para o Mar!”
O teste 3D é fatalmente falho
Esta é apenas uma pequena amostra dos argumentos apresentados pelos partidários do apartheid na África do Sul, que insistiam que as críticas ao país eram injustas de uma maneira consistente com as alegações de demonização, duplos padrões e deslegitimação. Isso sugere que o “teste 3D” de Sharansky para distinguir a crítica de Israel do antissemitismo é fatalmente falho porque, na realidade, reúne várias estratégias retóricas que não são exclusivas de Israel, contudo foram utilizadas por outros estados párias para justificar suas próprias práticas opressivas. Essas estratégias são, em essência, afirmações sobre a falta de justiça, e provavelmente serão promovidas por qualquer país que enfrente críticas abrangentes. Utilizar tais argumentos desgastados e reformulados como uma arma contra os críticos de Israel não contribuirá para a luta contra o antissemitismo, somente enfraquecerá o ativismo por direitos humanos.
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