Campos da Liberdade

Nas encostas escuras da Líbia, iluminadas somente pelos faróis dos carros estacionados, um grupo de mulheres joga futebol. Uma visão comum em outros lugares é deformada pela natureza clandestina do jogo, mas a necessidade dessas mulheres de jogar sob a cobertura da escuridão logo se revela.

Como alguém persevera diante da adversidade? Para os privilegiados entre nós neste mundo, a adversidade significa que seu Starbucks local ficou sem leite de soja. Para as mulheres do documentário de estreia de Naziha Arebi, Campos da Liberdade (Freedom Fields), perseverança significa arriscar suas vidas diariamente, contornando ameaças de morte e torrentes de abuso de seus companheiros líbios, e lidando com contratempos diários e constante intimidação de todos ao seu redor, apenas para que possam realizar sua paixão.

Durante cinco anos após o levante líbio de 2011, a cineasta anglo-libanesa Naziha Arebi acompanhou a jornada da equipe feminina de futebol da Líbia, um grupo de mulheres dedicadas, cujo único “crime” era o desejo de representar seu país no mundo do esporte competitivo da mesma forma que a respeitada equipe de futebol masculino da Líbia. No entanto, em uma sociedade arruinada e pós-revolucionária, ainda se mantém a enorme facilidade com qual discursos midiáticos de líderes sociais e religiosos espalham as sementes condenatórias que logo se transformam em ódio nacional.

“Ela é filha de um judeu” – diz um imã de forma eloquente – “ou talvez ateu? Não, escrito na carteira de identidade de seu pai está muçulmano.” Tal comentário pejorativo, longe de ser sutil, inflama correntes sexistas no Oriente Médio, assim como alimenta a ideia absurda de que “garotas altas, jovens e bonitas mostrando as pernas” – embora a maioria da equipe use cobertura da cabeça aos pés – em práticas esportivas aparentemente exclusivas aos homens, desestabilizam completamente o pensamento coletivo. Algo tão hediondo e imoral certamente faria com que a própria Terra saísse de seu eixo. “Onde estão os limites de Deus?” – pergunta o imã a um grupo de homens que participaram de uma revolução que levou a inúmeras mortes, ferimentos e êxodos e que agora passam o tempo perseguindo mulheres que desejam praticar esportes. De fato, os limites de Deus precisam ser conferidos.

Arebi preserva a intimidade em seu documentário, concentrado nas personagens, um trio de mulheres da equipe, cuja jornada em constante mudança, durante os cinco anos de filmagem, fornece a narrativa para o filme de 97 minutos. Ela relata ao público que as filmagens foram cheias de dificuldades; a cineasta foi recebida com hostilidade e desconfiança, por exemplo, não apenas porque era mulher, mas também por ser uma mulher que mal falava árabe e carregava uma câmera por perto.

“Quem é ela? – provavelmente pensaram – Ela é jornalista? Ela é uma espiã?”, Lembra Arebi. Ela ri enquanto relata o problema que sua equipe enfrentou ao tentar filmar algo tão simples quanto as personagens correndo no parque. Devido à situação terrível do país, ela explica, a situação mudava com frequência. “Tivemos que negociar por semanas apenas para obter tomadas simples.” Com diferentes facções controlando áreas específicas, filmar foi uma luta difícil. Às vezes, até mesmo seu cinegrafista era impedido de trabalhar por restrições de gênero, deixando Arebi sozinha com a câmera em circunstâncias bastante perigosas.

Quando uma das jogadoras tenta deixar a Líbia para participar de um evento de futebol e tem uma conversa extremamente tensa com um soldado na fronteira, por exemplo, Arebi mantém a câmera abaixada, deixando o público sem nada para ver além de uma tela em branco, que serve para exacerbar o desespero da moça, que implora e negocia. É uma experiência angustiante, e a dor na voz da personagem, combinada com o medo que o público tem do que o soldado pode estar prestes a fazer, leva os espectadores à beira de seus assentos por alguns momentos do filme

No início do documentário, uma das três protagonistas, Hajima, emocionada e apaixonada, reflete que, como líbias, “nós tivemos muitos inícios, mas somente inícios.” Essa foi uma referência às muitas revoluções fugazes que seu país sofreu. Ela está atordoada pelas esperanças em relação ao futuro, aguardando ansiosamente a mudança pela qual seu país tanto lutou, sonhando em conseguir jogar futebol com suas amigas e companheiras de equipe, em um novo capítulo nacional. Mas a alegria dura pouco.

Com o passar do tempo, as meninas se deparam e voltam a se deparar contra becos sem saída, proibidas de participar de torneios internacionais e sem assistência da Federação de Futebol da Líbia, supostamente, segundo o esperado, sua principal apoiadora, embora tenham sido autorizadas a jogar sob o regime anterior. Com o sonho de jogar profissionalmente e serem aceitas pelo país em frangalhos, muitas das garotas recorrem a objetivos mais práticos, como carreiras profissionais fora do campo e a formação de famílias, o que também acontece com o trio que protagoniza o documentário. Fadwa, estoica e equilibrada, tornou-se engenheira; Nama, atlética e otimista, permanece refugiada em seu próprio país, como uma entre os 30 mil expulsos de sua cidade natal, Tarwegha; e Halima estuda para se tornar médica, enquanto ainda mantém o sonho evanescente de jogar futebol.

“As meninas nascem e crescem para se casar,” opina Fadwa. “É isso, a história da vida. Se você não fez isso, você não fez certa.” Ao dizer isso, ela revela que Campos da Liberdade não é apenas uma história sobre futebol; é uma história de mulheres que lutam para existir livremente em uma sociedade que constantemente as oprime. A decisão da diretora de incluir fotos recorrentes de vestidos de noiva e lojas de vestidos de noiva é interessante; o tema do casamento está sempre presente, uma expectativa compartilhada por todas as personagens, à medida que são pressionadas insistentemente a escolher a vida de casada acima de sua paixão pelo futebol.

Quatro anos depois, as meninas se reúnem e finalmente participam de um torneio internacional no Líbano, junto de mulheres de todo o mundo árabe que jogam futebol juntas. Depois de uma briga desastrosa entre a equipe e a administração reguladora – da mesma federação que as abandonou da primeira vez – elas retornam à Líbia com a intenção de estimular a futura geração de atletas do sexo feminino e criar sua própria ONG para facilitar o ensino de jovens meninas que desejam praticar esse esporte encantador.

Apesar de cinco anos infernais de sangue, suor e lágrimas, as meninas de Campos da Liberdade demonstram que a perseverança diante da adversidade é um desafio árduo, mas que pode levar à felicidade e ao sucesso. “Com muita vontade, determinação e profunda convicção, podemos ter esperanças de uma boa mudança,” diz Arebi ao público. “Campos da Liberdade deveria encerrar suas filmagens em 2013, mas o núcleo e a essência do filme foram sempre os mesmos… É importante mostrar as diversas faces de um mesmo lugar, e acompanhar a jornada das garotas foi uma bela maneira de explorar a cultura e a sociedade líbia.”

De acordo com Assia, integrante da equipe que constantemente desafiava a autoridade opressora, “o final do filme é um novo começo, onde o futebol não é apenas um jogo, é também uma ferramenta para ajudar a acabar com a discriminação”. Ela usa a analogia de estar em um barco no mar, sem perceber o quão longe viajou até olhar para trás, para explicar como se sentiu quando assistiu ao filme pela primeira vez. “Chorei desconsoladamente… resumiu nossas lutas e dificuldades em menos de 90 minutos. Você jamais deve se render. Deve continuar lutando por seus sonhos e seus direitos.”

Halima, tendo cumprido seu sonho de se casar e tornar-se médica, revela ao público que está grávida. Se for uma menina, ela promete, será a melhor futebolista feminina em toda a Líbia.

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