Jaffa: Um estado judeu e democrático é um paradoxo

Cidadãos palestinos de Israel – deslocados na Nakba de 1948 e incorporados ao nascente Estado judeu – costumam ser apagados da história do conflito de sete décadas na região. Entretanto, para Sami Abu Shehadeh, diretor executivo do Movimento da Juventude Yaffa (Jaffa), as lutas enfrentadas pelos cidadãos palestinos de Israel devem ser identificadas como parte da campanha coordenada de Israel contra os palestinos.

“Israel foi construído sobre as ruínas do meu povo, do povo palestino. Então nós, a minoria palestina dentro de Israel, não somos apenas uma minoria que imigrou para este lugar. Nós somos a comunidade nativa. No nosso caso, para ser honesto, Israel emigrou para nós da Europa!”, afirma ele.

O racismo estrutural em Israel está sempre presente; as raízes de sua cidadania fundamentam-se, sobretudo, em uma identidade étnico-religiosa, na qual cristãos e muçulmanos palestinos são considerados distintos da maioria judaica.

“Penso que a situação dos palestinos em Israel é de enorme perigo desde os Nakba, porque o simples fato de chamá-los de palestinos é rejeitado pelo Estado de Israel,” destaca Abu Shehadeh. “Do ponto de vista oficial de Israel, não há povo palestino; do ponto de vista do estado, não possuímos uma identidade nacional.”

Os palestinos em Israel representam aproximadamente 1,8 milhão de pessoas, cerca de 20% da população total; contudo, a comunidade enfrenta violenta discriminação e é ininterruptamente discriminada, na forma do “outro”, pelo establishment israelense. O Estado de Israel separa crianças árabes e judias durante os anos de educação básica, embora ainda proíba o ensino da história palestina nas escolas árabes. O papel do árabe é continuamente desvalorizado e os cidadãos não-judeus são excluídos da política.

“Esta é a forma de Israel tentar nos destruir, ao destruir nossa identidade.”

Segundo Abu Shehadeh, tais problemas agravaram-se ainda mais pelas posições cada vez mais duras assumidas pelo governo do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu. Reeleito para um quinto mandato no mês passado, Netanyahu investiu na composição de uma coalizão com a União dos Partidos da Direita (URWP, na sigla em inglês), constituída pelos três partidos religioso-sionistas: Lar Judeu, União Nacional e Poder Judaico (Otzma Yehudit).

Primeiro-Ministro israelense Benjamin Netanyahu fala durante uma reunião de gabinete semanal
em Jerusalém, 14 de abril de 2019 [Ronen Zvulun/AFP/Getty Images]

“O que difere a conjuntura atual das décadas anteriores é que toda a política israelense, não somente o governo, todos os ministros importantes, todas as instituições estatais importantes agora são controladas por políticos de direita, que carregam hoje perigosas filosofias fascistas, e lideram a sociedade,” afirma.

Abu Shehadeh também é membro do partido político árabe-israelense Balad, que conseguiu quatro cadeiras no Knesset, em coalizão com o colega Ra’am, na eleição de 9 de abril. Ambos os partidos compunham a chamada Lista Conjunta, junto ao Ta’al e Hadash; no entanto, o grupo se dividiu em duas facções, apenas algumas semanas antes da eleição, na esperança de conquistar mais cadeiras para os políticos árabes-israelenses separadamente. A estratégia, porém, não se concretizou.

“Do ponto de vista do partido Balad, as últimas eleições foram, sinceramente, uma espécie de catástrofe para toda a comunidade palestina dentro de Israel,” admite ele. “Nós do Balad fomos absolutamente contra a divisão da Lista Conjunta – acreditamos que a minoria árabe-palestina dentro de Israel deve ser organizada de acordo com sua identidade nacional, como uma minoria nacional.”

Ele responsabiliza Ahmad Tibi, líder da Ta’al, pela separação, argumentando também que essa decisão política indignou muitos palestinos em Israel e desmantelou a unidade entre as partes fornecida pela Lista Conjunta. A participação dos eleitores árabe-israelenses foi menor que o esperado nesta eleição; somente cerca de metade dos eleitores registraram seus votos, o que reflete a apatia vigente entre grande parte da comunidade quanto ao envolvimento político.

“Normalmente, ao participar de uma eleição, as pessoas possuem a sensação de que podem influenciar o sistema, de quem podem fazer uma mudança concreta. É por essa razão que decidem votar.”

“Porque Israel se fundamenta nessa filosofia racista – na qual o estado judeu governa somente para o povo judeu, governado somente pelo povo judeu para interesses aberta e exclusivamente judaicos – isso significa que, independente do resultado, a minoria palestina dentro de israel não terá influência no governo.”

Explica Abu Shehadeh.

“Assim, desde o princípio, diz às pessoas que não há muito porque votar.”

Ex-membro do Conselho Municipal de Tel Aviv-Jaffa, Abu Shehadeh também declara opiniões fortes sobre a amplamente controversa Lei do Estado-Nação, aprovada no ano passado. Em grande parte simbólico, o projeto foi promulgado logo após o 70º aniversário da fundação de Israel e declara que somente os judeus têm o direito à autodeterminação no país.

“Esse mito, chamado então de democracia judaica, é preciso que todos saibam, é um paradoxo. Aliás, não é um estado judeu, tampouco democrático. Por judeu, querem dizer uma interpretação absolutamente nova, um modelo sionista da interpretação do que é ser judeu, em desacordo com a vasta maioria da comunidade judaica ortodoxa em todo o mundo,” argumenta Abu Shehadeh.

“Além de não ser tão judeu do ponto de vista judaico, certamente não é uma democracia sob qualquer ponto de vista democrático, porque uma das bases da democracia é a igualdade. O estado judeu, por definição, não pode trazer igualdade entre seus cidadãos porque 20% da população não é judaica.”

“Sem igualdade, sem democracia, simples assim,” conclui.

Argumenta também que Israel é um caso único pois a maior parte de seus cidadãos são “cidadãos em potencial”, dado que muitos judeus que alegam representá-lo vivem fora do país, mesmo quando o Estado nega direitos básicos àqueles que vivem dentro de suas fronteiras.

“É o único caso no mundo onde a maioria dos cidadãos vive fora do estado,” destaca. “Cerca de dois-terços do povo judeu vive fora do estado judeu – o que significa que se trata de um estado de milhões de ausentes, milhões de pessoas que vivem fora do estado e que não desejam viver nele.”

Apesar destes desafios, a partir de seu trabalho de base no Movimento da Juventude Yaffa, Abu Shehadeh tem esperanças na próxima geração de palestinos em Israel.

“Esta é uma das maiores razões para o otimismo de todas as últimas décadas – a maior parte das pesquisas acadêmicas comprova que a maioria dos jovens palestinos dentro do Estado de Israel estão em processo de redescoberta de sua sua identidade e sentem-se muito mais conectados com a causa e as questões palestinas do que a geração anterior.”

Abu Shehadeh considera Israel o último projeto colonial do século XXI. Dessa forma, como parte de seu trabalho com o partido Balad, defende a descolonização para chegar a uma solução mutuamente favorável ao conflito. Admite que isso terá que incluir alguma concessão histórico e o reconhecimento da maioria judaica em Israel como grupo nacional.

“Nosso processo e nossa visão são construídos sobre justiça, igualdade e direitos humanos,” enfatiza.

“Pensamos que a solução deveria adotar um caminho diferente: de um estado judeu e racista para um “estado de todos os seus cidadãos”, tornando Israel uma democracia normal. Nós não estamos inventando algo novo.”

No entanto, tal proposta está longe da realidade. A administração do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, deve divulgar seu segundo esboço do “acordo do século” após o mês sagrado muçulmano do Ramadã, mas as expectativas são baixas após relatos de que a proposta nega qualquer soberania aos palestinos, além de certa autonomia administrativa em algumas cidades da Cisjordânia ocupada.

“Penso que Donald Trump, ele e Netanyahu não aprenderam com a história. Do nosso ponto de vista como palestinos em todo o mundo, esse “acordo do século” é um mau negócio e vamos recusar. E ninguém pode nos forçar a algo que não queremos,” diz o historiador palestino.

Ele condena o tratamento dado à questão questão por Trump, considerando-o “mau político” e “estúpido como diplomata”, ao lidar com “milhões de pessoas da mesma forma com que lida com seus negócios imobiliários”.

“Qualquer acordo que não seja construído com base na justiça não poderá ser uma solução sustentável para a Palestina […] Concessões devem garantir, no entanto, nosso orgulho nacional e nossos direitos básicos,” acrescenta ele, destacando a necessidade de Jerusalém como um capital comum, a destruição dos assentamentos ilegais e o direito de retorno para os refugiados

“Os palestinos lutam por seus direitos porque possuem uma causa justa,” conclui ele. “Esta é a nossa pátria.”

 

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