A espinhosa questão dos soldados estrangeiros servindo nas forças armadas israelenses está de volta às manchetes, desencadeada pelo debate sobre o futuro de Shamima Begum, a estudante britânica que fugiu de casa para se juntar ao grupo terrorista Daesh (Estado Islâmico), na Síria. Milhares de jovens, homens e mulheres de todo o mundo, incluindo Grã-Bretanha, Canadá e América, são voluntários para lutar nas Forças de Defesa de Israel (FDI), constantemente acusada de cometer crimes de guerra, crimes contra a humanidade e abusos de direitos humanos. O tratamento concedido pelo FDI aos palestinos é brutal, mesmo para um exército de ocupação.
Uma carta de 2014, escrita pelo chanceler britânico do gabinete paralelo (gabinete oficial da oposição), John McDonnel, e encaminhada à então Secretária de Estado para os Assuntos Internos, Theresa May, ressurgiu diante da polêmica. “Estou ciente da política do governo de prender e processar os cidadãos britânicos que viajam para lutar nos conflitos vigentes no Oriente Médio,” afirmou o congressista do Partido Trabalhista. “Pergunto se a senhora irá advertir todo cidadão britânico que considere recrutar-se ao FDI que, de acordo com a prática estabelecida pelo governo (por exemplo, a suspensão da cidadania britânica de, até então, quarenta titulares de passaportes do Reino Unido que estiveram envolvidos na Guerra Civil na Síria), tal engajamento pode pôr em risco sua cidadania britânica.”
McDonnel escreveu a May devido à gravidade da então ofensiva militar israelense contra os palestinos de Gaza e à aparente escalada dos ataques de Israel. “Exijo que a senhora trate de tais questões imediatamente, de modo que qualquer cidadão britânico que hoje participe ou planeje participar desses ataques esteja ciente das potenciais consequências e portanto seja dissuadido de agir desta maneira.” Também exigiu ações contra cidadãos binacionais anglo-israelenses, ao destacar a implicação de alguns deles em crimes de guerra, à luz dos bombardeios aéreos em Gaza, nos quais centenas de homens, mulheres e crianças inocentes foram assassinados.
A Baronesa Sayeeda Warsi, que já foi a mulher muçulmana mais poderosa no governo britânico, defende a ideia de processar os cidadãos britânicos voluntários no Exército israelense como qualquer outro indivíduo que lute por forças estrangeiras. A ex-Ministra de Estado para Assuntos Estrangeiros e da Comunidade argumentou que ao cidadão cabe permissão legal para lutar somente pelo país no qual está registrada sua cidadania. Warsi renunciou de sua cadeira no Ministério de Relações Internacionais em 2014, após repudiar a guerra em Gaza como “moralmente indefensável”. Desde então, parece ser ignorada nas decisões políticas do Partido Conservador.
A política vigente do governo britânico sobre o assunto, na opinião da Baronesa Warsi, é equivocada e contém lacunas. “Caso você saia do país e lute por qualquer organização,” ela explicou, “será submetido à ação litigiosa assim que voltar. Caso saia do país e lute por Assad [Presidente da Síria], eu presumo, de acordo com a nossa lei, está tudo bem. Não pode estar certo.” Então sugeriu que a única razão para o Reino Unido permitir a existência de lacunas legais é devido às Forças de Defesa de Israel. “Não temos determinação suficiente para dizer que, caso possua cidadania britânica, você faz uma escolha. Você luta apenas por nosso Estado.” A baronesa natural de Yorkshire disse que essa mensagem deve ser difundida em alto e bom som. A defesa de suas ideia é notável em tempos nos quais se questiona a lealdade dos muçulmanos na Grã-Bretanha.
“Nós não falamos sobre isso em relação a outras comunidades,” acrescentou. “Aceitamos que outras comunidades garantam múltiplas cidadanias. Devemos somente cobrir essas lacunas. Se você não luta pela Grã-Bretanha, você simplesmente não luta.”
Mick Napier, co-fundador da Campanha Escocesa de Solidariedade à Palestina (CESP) destacou que tanto a Anistia Internacional e o Observatório de Direitos Humanos quanto a Organização das Nações Unidas consideram o FDI culpado dos mais flagrantes crimes de guerra e lesa-humanidade. “Evidentemente, todo cidadão britânico que serve naquele Exército tem questões a responder, porque testemunhou ou esteve envolvido em crimes de guerra. Esse assunto não pode ser varrido para debaixo do tapete.”
De fato, ele acrescentou, há “evidências bem documentadas” de crimes de guerra perpetuados por Israel contra o povo palestino e suas crianças. “Os envolvidos devem ser responsabilizados sob lei internacional. Soldados israelenses, independente da nacionalidade, assim como os voluntários ludibriados pelo Daesh, devem ser responsabilizados por suas ações.”
Recrutas do FDI não necessariamente têm de ser nascidos em Israel ou mesmo possuir dupla cidadania. Qualquer um pode se alistar através do chamado programa “Mahal”, com restrições de idade e antecedentes específicos. Embora alguns combatentes de cidadania britânica em forças estrangeiras tenham sido indiciados ao retornar para a Grã-Bretanha, não é o caso daqueles alistados temporariamente nas Forças de Defesa de Israel. Tampouco é o caso dos combatentes filiados às forças curdas na Síria, apesar da Turquia, aliada britânica na OTAN, considerar muitos dos grupos milicianos curdos como organizações terroristas.
A iniciativa Mahal de Israel é destinada a homens com menos de 24 anos e mulheres com menos de 21 anos de idade. Os candidatos não precisam ser cidadãos israelenses ou mesmo judeus praticantes. Basta provar que possuem ao menos um avô judeu para poder se alistar por 18 meses no FDI.
Toda essa questão de lealdade e cidadania esteve presente nas manchetes com bastante frequência nos últimos dias. Pode ter implicações graves. Na última semana, por exemplo, uma corte de apelação americana julgou procedente um processo de $1 bilhão por palestinos e palestino-americanos contra o magnata dos cassinos Sheldon Adelson e outros apoiadores de Israel por genocídio e crimes de guerra. A decisão unânime do painel judicial tríplice da Corte de Apelações para o Distrito de Columbia (DC) revogou decisão de uma corte distrital que dispensava o caso. A corte superior argumentou que não cabia ao distrito julgar sobre assuntos políticos ou de política internacional.
O processo, relatado pelo MEMO, alega conspiração dos réus pró-Israel para expulsar não-judeus da Cisjordânia e Jerusalém, sob acusação de cometer ou auxiliar em genocídio ou outros crimes de guerra. Os outros réus citados no processo incluem o bilionário Larry Ellison, presidente da Oracle, além dos bancos Leumi e Hapoalim; empreiteiras e companhias auxiliares como Hewlett Packard e Volvo; e outras treze organizações sem fins lucrativos. A juíza Karen LeCraft Henderson alegou que a corte pode decidir se os reús citados no processo conspiraram para remover não-judeus da Cisjordânia e cometeram crimes de guerra “sem falar na questão da soberania, caso concluído que colonos israelenses estão de fato cometendo genocídio.”
Enquanto isso, o governo britânico pede aos parlamentares que criminalizem qualquer forma de filiação ou apoio aos Hezbollah do Líbano; aqueles que ignorarem a nova legislação serão condenados a dez anos de prisão. O plano para estender a presente proibição do braço armado do Hezbollah à organização como um todo, apesar de parlamentares do Hezbollah servirem no governo em Beirute, será discutido essa semana, na sexta-feira.
O governo britânico anunciou que a entidade será “condenada” como organização terrorista, a partir de sexta-feira, devido às suas “tentativas de desestabilizar a frágil situação no Oriente Médio”; ministros alegam que já não podem discernir entre o partido político Hezbollah e seu braço armado, já condenado.
O Ministro do Interior Sajid Javid, envolvido nos debates sobre cidadania incitados pela fuga da noiva do Daesh, Shamina Begum, anunciou a iniciativa. “Minha prioridade é proteger o povo britânico,” afirmou. “Como parte disso, identificados e banimos qualquer organização terrorista que ameace nossa segurança, independente de motivação ou ideologia, razão pela qual estou operando hoje contra diversas organizações.”
Outros grupos marcados para designação britânica como entidades terroristas incluem o Ansaroul Islam e o JNIM, operantes na região africana de Sahel; a Frente de Libertação Popular Revolucionária Marxista-Leninista (DHKP) e a Frente de Libertação Popular Revolucionária/Unidade Armada de Propaganda (DHKC/SPB), na Turquia, aliados do Partido da Frente de Libertação Popular Revolucionária (DHKP/C), também já condenado. Organizações consideradas aliadas do Daesh também estão na agenda condenatória das ações britânicas e incluem o Jaysh Khalid Bin Walid e o Exército de Khalid Ibn Walid.
Será tomada uma postura contundente contra cidadãos britânicos que se alistam às Forças de Defesa de Israel? É improvável, considerando as fortes inclinações sionistas dos ministros e parlamentares do governo e na Casa dos Comuns. Não faz tanto tempo, vale recordar, que o governo britânico alterou as jurisdições universais dos procedimentos governamentais para acomodar as visitas dos políticos israelenses, embora suspeitos por crimes de guerra.
Não se trata de afirmar que os combatentes do Daesh equivalem àqueles nos uniformes das FDI. Trata-se de legislar e aplicar a lei a todos. Por muitos anos, os membros das FDI se acostumaram, literalmente, a escapar ilesos de uma série de homicídios. O governo britânico deve aplicar os mesmo princípios a todos, de modo que os britânico que lutam por Israel também sejam responsabilizados ao retornar para o Reino Unido. Não é disso que se trata a democracia e o estado de direito?
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