Mulheres sauditas estão entre as mais fortes, mais inteligentes e mais inspiradoras mulheres do Oriente Médio. Ativistas e acadêmicas palestinas realizam campanhas pelo direito das mulheres na Arábia Saudita há décadas e décadas, mas infelizmente enfrentaram um processo lento e uma forte reação negativa da sociedade e do governo.
As mudanças recentes nas leis de tutela (wilaya) da Arábia Saudita são de fato as mais significativas até o momento. Essas mudanças removem muitas das restrições sobre a mobilidade das mulheres sauditas, incluindo o direito de viajar para o exterior sem autorização de um guardião masculino. Também permitem que as mulh
eres requeiram e renovem seus próprios passaportes, o que lhes permitirá viajar com maior liberdade. Sinceramente, tenho esperanças de que tais reformas possam trazer desenvolvimentos positivos à sociedade saudita.
No entanto, é essencial que não romantizemos essas mudanças como algo separado da agenda política do estado. As reformas nas leis de tutela têm sua origem no estado patriarcal, de cima para baixo, com o propósito central de promover sua própria imagem, ao utilizar o empoderamento feminino como uma ferramenta para este propósito. A questão central é: até que ponto essas mudanças realmente são sobre as mulheres e para as mulheres?
Ativistas sauditas – como Mana Al-Sharif, Hatoon Al-Fassi, Samar Badawi, Eman Al-Nafjane, Lujain Al-Hathloul, entre outras – têm pressionado por tais mudanças há décadas. Entretanto, jamais conquistaram muitas reformas legais até que o príncipe-herdeiro Mohammed Bin Salman se tornasse o sucessor ao trono.
Entre problemas políticos e econômicos na Arábia Saudita, Mohammed Bin Salman logo promoveu sua própria imagem como um líder jovem e progressista, que deseja modernizar a sociedade saudita, com a causa das mulheres como uma de suas prioridades. Ainda assim, o príncipe-herdeiro conquistou, ao mesmo tempo, uma reputação negativa e altamente criticada devido à sua violenta abordagem para silenciar qualquer tipo de oposição, à falta de liberdade de expressão sob seu governo de fato e ao aprisionamento de todos aqueles que critiquem o regime saudita.
O assassinato brutal do jornalista saudita Jamal Khashoggi, em outubro de 2018, agiu como prova da extensão dos atos repressivos da monarquia saudita a qualquer forma de crítica e oposição às narrativas oficiais do estado. Analogamente, o estado saudita aprisionou inúmeros acadêmicos religiosos, incluindo Salman Al-Ouda e Awadh Al-Qarni, por se recusarem a adaptar suas perspectivas religiosas a serviço dos objetivos políticos do estado.
Antes disso, o estado havia apoiado amplamente o domínio dos ulemás (eruditos) sobre os códigos de vestimenta, comportamento e aparência pública das mulheres. Agora, em uma versão distinta de modernidade, adaptada à nova imagem do estado em contraponto à sociedade “tradicional, conservadora, restritiva”, as mesmas decisões estão aos poucos sendo revertidas. É interessante notar que tais dogmas foram criados e promovidos positivamente pelo próprio estado saudita no passado.
À luz dos novos desenvolvimentos, então, as mudanças recentes nas leis de tutela e nos direitos das mulheres não podem ser vistas separadamente da agenda política do estado patriarcal e de sua abordagem histórica à causa das mulheres. Tais decisões só emergem do estado quando servem aos seus interesses – ou de fato aos interesses de Mohammed Bin Salman –, a fim de caracterizá-lo convenientemente como um campeão em defesa dos direitos das mulheres.
Os créditos dessas mudanças já foram transferidos ao estado patriarcal. De fato, há ainda muitas questões em aberto sobre o assunto, antes mesmo que tais reformas possam ser celebradas ou plenamente materializadas na sociedade saudita.
Qual foi exatamente o processo por trás de tais decisões tão importantes? Por que o mundo não ouve falar das ativistas, intelectuais e pesquisadoras mulheres que tão consistentemente lutaram por essa causa? O que aconteceu às suas ações e discursos? Essas reformas foram feitas por elas, ou para elas, à medida que silenciavam suas vozes e alegavam falar em seus nomes? Essas mulheres estavam presentes na mesa de negociações? Houve discussões com outros agentes sobre a influência dessas reformas nas estruturas sociais atuais?
Em outras palavras, apesar da natureza positiva das mudanças, é preciso se lembrar que são um produto entregue de cima para baixo. Ou seja, decisões impostas de uma perspectiva superior, ao invés de negociadas e implementadas por e para as mulheres. São de fato reformas a serviço do estado.
Ativistas femininas que lutaram bravamente por esses direitos foram presas no ano passado; Lujain Al-Hathloun permanece na cadeia, sob tortura e assédio. A prisão de uma única mulher significa a prisão de toda a causa ampla dos direitos das mulheres.
Muitas das mulheres libertadas recentemente não fizeram qualquer declaração sobre seu tempo na cadeia, pois é bastante provável que temam por suas vidas e por seus familiares. Será que um dia poderão falar abertamente sobre a tortura sofrida, ou ao menos manter seu trabalho em nome da causa das mulheres, como faziam antes da prisão? Duvido bastante.
É irônico que essas leis de tutela ainda impeçam as mulheres de assumir o pleno controle sobre suas próprias vidas. Pois de fato uma mulher pode ter controle sobre sua própria vida enquanto ainda estiver silenciada naquilo que pensa sobre políticas de estado, com medo das prováveis consequências? Ou isso é meramente uma pequena transferência de poderes, do patriarcado na esfera privada (os guardiões masculinos em casa) para o patriarcado na esfera pública (o estado), oficialmente decidindo e governando sobre todas as narrativas e discursos das mulheres?
A lição aqui presente é que o foco deve estar no sistema e nas estruturas e que, a longo prazo, projetos de modernização de cima para baixo jamais servirão às mulheres. Até recentemente, o estado orgulhava-se de seu nacionalismo religioso e de suas estruturas sociais ultraconservadoras, de modo a observar tudo e todos através deste prisma. Agora, da noite para o dia, a religião é retirada da equação, sem qualquer introdução gradual a novos valores sociais. É evidente que a elite política parece estar construindo novos binarismos entre religião e modernidade. Isso parece ser o novo mito nacional promovido pelo estado saudita sobre o estado saudita.
A elite apropriou-se das causas pelos direitos das mulheres e de suas lutas ao assumir para si a autoridade sobre qualquer progresso, novamente reforçando a imagem da mulher no banco de trás do veículo, à qual são “concedidos” seus direitos legítimos, não por serem inalienáveis, mas sim porque o estado é benevolente o bastante para outorgar seus favores sobre elas.
De fato, as reformas recentes na Arábia Saudita são positivas, mas o que significa tal abordagem autoritária às mulheres a longo prazo ainda permanece como a grande dúvida. O empoderamento feminino por meio do estado pode ser, na realidade, uma força para mudanças positivas, mas o que pode acontecer quando este mesmo estado decidir simultaneamente silenciar e aprisionar quaisquer vozes alternativas? A resposta: um passo adiante, dois passos atrás. Será essa uma forma de liberdade vigiada? Aqui, o estado faz das mulheres aliadas e inimigas, mesmo ao servir sua agenda política.
Madawi Al-Rasheed resume bem essa situação em seu livro “A Most Masculine State” (“Um Estado Fundamentalmente Masculino”, em tradução livre): “As mulheres sauditas tornaram-se reféns de projetos políticos nacionalistas que exigem delas a performance tanto de versões reverentes e contestadoras da modernidade, cada qual apropriada à agenda estatal e sujeitas a mudanças ao longo do tempo.”
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