Uma guerra secular: a luta de classes na Palestina e os ‘três inimigos distintos’

No coração da luta palestina por direitos humanos fundamentais está a luta constante dos trabalhadores palestinos. Embora hoje se encontrem na vanguarda de inúmeras batalhas, de Israel aos territórios ocupados e Líbano, as raízes dessa guerra, que planeja destruir a própria força de vontade do povo palestino, têm décadas e décadas de história.

O renomado romancista e intelectual palestino Ghassan Kanafani foi assassinado pelo Mossad – serviço secreto de Israel – em Beirute, capital do Líbano, em julho de 1972. Contudo, deixou um rico legado em literatura e análises históricas sem precedentes. Em seu ensaio “A revolta de 1936-1939 na Palestina” (publicado no Brasil pela Editora Sundermann), Kanafani observou que a “principal ameaça” ao movimento nacional palestino compreende três inimigos: “o local, a liderança reacionária; os regimes nos estados árabes ao redor da Palestina; e o inimigo imperialista sionista”.

No entanto, costuma-se focar pouco nas classes trabalhadoras palestinas, seja na Palestina em si ou no Oriente Médio em geral, o que é fundamental para desenvolver uma análise coerente e abrangente, capaz de relacionar as raízes históricas da luta palestina com suas manifestações presentes. Kanafani, entretanto, estava ciente de tais dinâmicas, vigentes até hoje.

“A mudança de uma sociedade semifeudal para uma sociedade capitalista foi acompanhada por um aumento na concentração de poder econômico nas mãos da máquina sionista e, consequentemente, da sociedade judaica na Palestina,” escreveu Kanafani pouco antes de seu assassinato. Em seu ensaio, ele relacionou os interesses coletivos da “burguesia emergente urbana” palestina aos colonos sionistas, pois compartilhavam objetivos econômicos. Com efeito, isso significou a marginalização e uma série de agressões contra os trabalhadores e camponeses palestinos, excluídos agora do novo modelo econômico, portanto abandonados e empobrecidos.

A greve geral e a rebelião de 1936-39 é, em grande parte, resultado desta realidade. Eventualmente, “o proletariado árabe [palestino] entrou em declínio”, segundo Kanafani, “vítima do colonialismo britânico e do capital judaico [sionista], sendo o primeiro o principal responsável”.

A Nakba – “catástrofe” e destruição da pátria palestina em 1947-48 – executou muito mais do que a expulsão à força de grande parte do povo palestino em relação à sua pátria ancestral. Também culminou em um novo capítulo, ainda mais trágico, na guerra contra os trabalhadores palestinos, que se tornaram completamente dependentes de doações internacionais. A perda das terras palestinas foi acompanhada pela perda da dignidade do povo palestino, como se exemplifica na questão dos refugiados, dispostos em longas filas para receber uma pequena porção de ração alimentar e outros suprimentos insignificantes, com os quais mal é possível sobreviver.

Palestinos fogem de suas casas durante a Nakba de 1948, também conhecida como “Grande Catástrofe”

Centenas de milhares de palestinos também foram forçados a buscar segurança fora da Palestina. Embora cada população de refugiados tenha se submetido invariavelmente às circunstâncias políticas, econômicas e sociais exclusivas de seus respectivos anfitriões – em particular, os países árabes –, todas carregavam o mesmo denominador comum: um sentido profundo de vulnerabilidade, impotência e perda.

Para apequenar politicamente o povo palestino ainda mais, os “três inimigos distintos” do movimento nacional palestino, como descrito por Kanafani, conspiraram para tornar o problema dos refugiados somente uma questão humanitária, não relacionada de qualquer modo significativo às estratégias políticas. Para suportar minimamente esse contexto desalentador, os trabalhadores palestinos tiveram de permanecer dependentes e politicamente isolados.

No Líbano, por exemplo, os palestinos são negados o direito básico ao trabalho em 72 profissões. No decorrer dos anos, isso resultou em uma enorme vulnerabilidade dos trabalhadores refugiados palestinos à exploração, pois foram forçados a buscar emprego em trabalhos não-qualificados e campos de menor rendimento salarial, como construção civil e afins. Sem oportunidades ou segurança de trabalho, uma maioria dos refugiados palestinos no Líbano simplesmente deixou o país. Segundo um censo conduzido em 2017 pela Administração Central de Estatísticas do Líbano, o número de refugiados palestinos no país reduziu-se significativamente de quase 500.000 para 175.000 pessoas.

A guerra na Síria deteriorou ainda mais as condições nos campos libaneses devido ao influxo massivo de uma população trabalhadora que abrange sírios e palestinos em fuga dos horrores da guerra. Com cada vez mais trabalhadores qualificados e não-qualificados, o mercado libanês tornou-se supersaturado. A classe trabalhadora palestina viu-se então em ainda maior desvantagem.

O ponto de ruptura ocorreu em junho deste ano, quando o Ministro do Trabalho do Líbano – Kamil Abu Sleiman – emitiu um decreto que obriga os palestinos no Líbano a obter autorizações de trabalho como estrangeiros comuns. Apesar dos protestos em massa das populações de refugiados, em Beirute e nos campos por todo o país, os objetivos dos manifestantes não se resumiam a contrapor o que viam como decisão injusta, mas também condenar políticas oficiais historicamente duradouras que criaram uma atmosfera de alienação política e econômica.

No entanto, nada disso deve ser analisado separado da luta maior enfrentada pelos trabalhadores palestinos em todo o mundo. A história do Líbano é parte fundamental das dinâmicas políticas regionais, instigadas por uma perspectiva compartilhada por Israel e Estados Unidos, que vê a própria existência dos refugiados palestinos como um problema a ser liquidado de uma forma ou de outra. Embora o direito de retorno dos refugiados palestinos seja um imperativo moral e “inalienável” garantido pela lei internacional, Washington, Tel Aviv e mesmo alguns governos árabes conspiram formas de suprimí-lo inteiramente.

De fato, muitas medidas já foram tomadas nesta direção, como a decisão americana de retirar recursos da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA). Refugiados palestinos dependentes da UNRWA para diversos serviços de saúde, educação e emprego sofrem as consequências cotidianas dessa crise financeira; todavia, são os refugiados no Líbano que mais sofrem seu impacto. No Líbano, refugiados palestinos são assediados e agredidos meramente por viverem no país onde demografias sectárias exercem um papel majoritário na política.

Desaparecimento da Palestina – cinco milhões de palestinos são classificados
como refugiados pela ONU

De modo bastante similar, políticas demográficas são de fato a razão de ser das políticas israelenses em relação aos palestinos por gerações e gerações. A limpeza étnica na Palestina histórica, em 1947-48, que persiste até hoje em múltiplas maneiras, é executada com o propósito de garantir uma maioria judaica na Palestina. Sequer uma única estratégia conduzida por Israel em relação aos palestinos deixou de levar em consideração a chamada “ameaça demográfica” palestina. A construção de assentamentos ilegais, estradas exclusivamente judaicas, a judaização de Jerusalém, o cerco a Gaza, a guetização da Cisjordânia e mesmo a “lei básica de cidadania”, foram todos projetados para repelir a suposta ameaça palestina.

Israel, frequentemente, não está sozinho em seus crimes. A manipulação da Autoridade Palestina (AP) em relação a ofertas de trabalho e salários como forma de garantir lealdade política ou punir seus dissidentes é uma estratégia bastante evidente na Faixa de Gaza sitiada. À medida que o Fatah – principal facção da Autoridade Palestina – mantém sua rivalidade com o Hamas em Gaza, o líder palestino Mahmoud Abbas reiteradamente cortou salários ou negou emprego a milhares de palestinos de Gaza, o que levou a protestos de massa similares àqueles em curso no Líbano.

De fato, Gaza é a ilustração perfeita dos três inimigos descritos por Kanafani, à medida que as provações no território litorâneo foram esquematizadas deliberadamente por três agentes principais: “a liderança reacionária (Autoridade Palestina); os regimes nos estados árabes ao redor da Palestina (Egito); e o inimigo imperialista sionista (Israel)”.

É como se a história repetisse a si mesma uma e outra vez, em todos os seus detalhes mais sórdidos. A colonização de Israel, a conspiração dos países árabes e o oportunismo dos líderes palestinos preservam o mesmo velho tabuleiro; entretanto, trabalhadores palestinos, a classe predominante nas comunidades de refugiados palestinos, ainda é o alvo principal.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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