O Presidente e o Empreiteiro

Dois nomes dominam hoje a paisagem política do Egito: Abdel Fattah Al-Sisi, o Presidente, e Muhammad Ali, o Empreiteiro. Sisi – que assumiu o poder após a deposição de Mohamed Morsi, primeiro presidente democraticamente eleito do Egito – governa o país com mão de ferro e controla todos os centros de poder por meio de suas agências de segurança. Recentemente, o atual presidente egípcio impôs emendas à Constituição para garantir que permanecerá como tal até 2030. Ali é um rapaz jovem que apareceu do nada no cenário político do Egito, após fugir para a Espanha e divulgar supostos conhecimentos sobre diversos casos de corrupção no interior do regime, onde cresceu e floresceu como empresário. Para tanto, Ali revelou uma série de registros em vídeo e assumiu um papel de herói nacional, capaz de preencher o vazio de informações que aflige a política do Egito.

O presidente decidiu responder pessoalmente às acusações feitas pelo empreiteiro, ao expor uma situação tão absurda que passou a ser vista como uma espécie de enigma. Como podemos então compreender o que acontece?

Algumas pessoas acreditam que este processo é um resultado natural do papel desempenhado pelo Exército na política do Egito e sua insistência em manter o controle sobre todos os aspectos do governo, desde 1952, quando de fato tomou o poder. Em 2011, o Exército interveio efetivamente para abortar a revolução de janeiro, parte do contexto de Primavera Árabe, uma insurgência marcada pela oposição ao “governo militar” como um todo, não somente ao regime de Mubarak.

Este ponto de vista, portanto, observa o governo militar no Egito como uma extensão natural daquilo que foi feito pelo Exército desde 1952. Este olhar, no entanto, não é preciso. O que acontece no Egito hoje nada tem a ver com um projeto nacional da “revolução de julho de 2013” ou de seu regime ditatorial subsequente. Alguns poderão dizer que Sisi chegou ao poder da exata mesma maneira que Gamal Abdel Nasser, por meio de um golpe militar que depôs um governo civil, e que Al-Sisi então representa a fundação de um novo renascimento nacional, similar àquele de Nasser. Este olhar, no entanto, também é impreciso. Sisi não chegou ao poder através de uma organização secreta cujos membros concordaram em estabelecer um projeto de país, como fez Nasser, ou Sadat, ou mesmo Mubarak, por meio de um “mecanismo de passar o poder por livre e espontânea escolha”. De fato, Sisi tomou o poder em virtude de circunstâncias absolutamente distintas, que refletem as ambições de um homem cuja posição permitiu explorar, por um lado, as contradições da revolução de janeiro de 2011 e, por outro, os erros da Irmandade Muçulmana. Ironicamente, foi o próprio Presidente Mohamed Morsi, agora falecido, que deu a Sisi a oportunidade devida, não porque o indicou como Ministro da Defesa, mas sim quando rompeu com as regras de senioridade – que priorizam cargos políticos por tempo de serviço –, anteriormente muito respeitadas dentro do Exército, mas que então abriram espaço para permitir que Sisi reafirmasse ainda mais seu domínio sobre o establishment militar para obter ganhos pessoais.

Vale observar que os erros cometidos pela Irmandade Muçulmana, em particular após a eleição de Morsi, de fato pavimentaram o caminho para as manifestações de 30 de junho de 2013, tão exploradas por Abdel Al-Sisi. É possível supor que ele mesmo as tenha incitado e coordenado, a fim de justificar as medidas tomadas a seguir.

Este ponto de vista parece confirmar que Sisi planejava tomar o poder já por algum tempo e que o roteiro anunciado por ele em 3 de julho de 2013 nada mais foi do que uma fase elementar cujo propósito era dar espaço à sua indicação como presidente do país, como se legitimada por vontade popular. Assim, lançou a isca mordida por muitos intelectuais e políticos egípcios, incluindo o proeminente jornalista Mohamed Hassanein Heikal, que desempenhou um papel fundamental ao promover a ideia de representar Sisi como o chamado “candidato da necessidade”.

Assim que obteve êxito em estabelecer uma imagem de “salvador da pátria”, invocada pelas massas para livrar-se do domínio da Irmandade Muçulmana, Sisi empreendeu novos símbolos que lhe outorgavam a imagem de alguém absolutamente capaz de sacrificar todos os bens pessoais para ajudar seu país a voltar a crescer. Este movimento populista tornou-se bastante claro quando Sisi caminhou, ao lado de uma enorme multidão de jornalistas, a um de seus bancos, para doar metade de sua fortuna ao Fundo “Vida Longa ao Egito”.

Desta forma, assim que consumou sua posição dentre a opinião pública, Sisi passou a fazer declarações que sugeriam a si próprio certo aspecto de Providência Divina. Sisi passou a repetir o verso curânico: “Dize: Ó Deus Soberano do Poder! Tu concedes soberania a quem Te apraz e a retiras de quem desejas. Em Tuas mãos está todo o Bem”. Chegou até a representar a si mesmo como “Doutor dos Filósofos”, ao insistir que não assumia decisão alguma sem consultar primeiro a Orientação Divina, de modo a preterir, portanto, quaisquer estudos de viabilidade. Caso contrário, como poderiam ter feito sequer vinte por cento do que fez até então? Assim, poderia responder às preocupações e dúvidas naturalmente populares, ao criar efetivamente uma aura de temperamento e psicologia ao culto à personalidade do Presidente Abdel Al-Sisi.

Muhammad Ali Pasha al-Mas’ud ibn Agha,
governante otomano do Egito de 1805 a 1848

Os limites impostos por Sisi ao ativismo de setores políticos e da sociedade civil, e a hegemonia do estado sobre os meios de comunicação, resultaram em um fenômeno hiperbólico de ufanismo referente à figura histórica de Muhammad Ali (1769-1849), governante otomano considerado fundador do Egito moderno. Este retorno de exaltação de um pensamento político histórico enfraqueceu a posição do atual presidente, em contraponto claro ao seu senso de urgência cada vez maior.

As pessoas passaram a olhar aos resultados das políticas adotadas nos últimos cinco anos, de fato pouco ou nada promissores. Apesar do estardalhaço feito pela imprensa sobre as “conquistas do presidente” e seus grande projetos – como a expansão do Canal de Suez, os túneis entre Sinai e Vale do Nilo, as novas cidades e projetos agrários –, o cidadão egípcio comum não teve a oportunidade ainda de perceber qualquer melhora significativa às suas condições de vida, salvo os investimentos evidentes na malha rodoviária do país. De fato, as condições pioraram, e os padrões de vida estão em níveis perigosamente baixos, em particular para a classe média-baixa e as pessoas mais pobres.

Nos últimos cinco anos, o Egito passou a sofrer com níveis jamais vistos de dívida orçamentária. No fim de junho deste ano, a dívida externa do país excedeu valores de US$ 106 bilhões, enquanto débitos domésticos chegaram a mais de 5 trilhões de libras egípcias (aproximadamente US$ 1,27 trilhão). Durante o primeiro mandato de Sisi, quase um terço da população do Egito caiu para abaixo da linha da pobreza – ou seja, cerca de cinco milhões de egípcios em necessidade extrema. Tudo isso ocorreu sob controle absoluto da esfera pública pelas agências de segurança e simultaneamente a prisões sistemáticas que lotaram os centros carcerários do Egito com figuras de oposição.

A última gota d’água foi o esforço de Sisi para alterar a Constituição a fim de permitir-lhe permanecer no poder até 2030. Foi aí que o Empreiteiro Muhammad Ali e seus vídeos ganharam notoriedade nas redes sociais. Ali foi proprietário de uma companhia que trabalhou sob contratos públicos por quinze anos, supervisionada pelo Exército. Sua empresa parece ter obtido grandes empréstimos, que não conseguiu pagar. Esta é aparentemente a motivação de Muhammad Ali para divulgar tudo que sabe sobre a corrupção rampante dentro do aparelho de estado.

Ali forneceu detalhes sobre casos específicos, difíceis de verificar, provavelmente improdutivas quanto a resultados efetivos sobre suas alegações. Contudo, estão na internet. Ao que tudo indica, não podem ser utilizados para investigar a credibilidade e precisão das informações concedidas; entretanto, tampouco podem ser úteis para investigar as razões que o levaram a fazer o que fez – o que de fato não é tão importante, ao menos no momento.

O que importa aqui não está relacionado ainda à veracidade ou credibilidade dos fatos, mas sim ao anseio popular de acreditar em tais alegações, além da inclinação das massas em reagir conforme sugeriu Ali. Milhões de pessoas já assistiram os vídeos de Muhammad Ali e reagiram tão intensamente que o Presidente Sisi sentiu-se compelido a responder diretamente às acusações contra ele. Portanto, é bastante natural que abordemos os pontos mais dignos de atenção e que adquiriram importância específica ao contexto nacional, sobretudo as razões pelas quais as elites políticas – entre governo e oposição – tanto se interessaram no que tem para dizer o jovem empreiteiro – um rapaz de pouca educação formal, surgido do nada –, além das respostas do governo de Sisi, se de fato são capazes de conter a crise ou se manterá o regime sob cozimento em fogo baixo.

Acredito que muitos fatores ajudaram a mobilizar as pessoas em torno da figura e do subsequente fenômeno de Muhammad Ali. Um destes fatores tem a ver com sua profissão, que tanto serviu à oportunidade de obter informações importantes de fontes primárias. Outros fatores estão relacionados a traços de sua personalidade e de sua performance diante da câmera. Ali fala de eventos sobre os quais possui conhecimento direto, ou mesmo tenha participado.

De fato, é possível que Ali tenha razões pessoais para divulgar tais informações, como uma forma de vingar-se contra aqueles que o desprezaram ou expropriaram suas riquezas. Pode ser até que esteja em busca somente de publicidade. No entanto, seus motivos também podem ser patrióticos, na crença de que a corrupção não pode mais ser tolerada. Seus motivos podem ser meramente pessoais, para seu próprio benefício, ou podem ser encorajados por outros agentes com interesses particulares.

O que realmente importa é que a informação divulgada por Muhammad Ali é extremamente perigosa e pode efetivamente contribuir para a implosão da imagem pública, construída pela mídia egípcia, em torno do chefe de estado do país, ao representar Sisi como um homem que sacrificou tudo, tempo e esforço, para se infundir no imaginário popular. Pode até ser que tais acusações resultem na perda de confiança em Abdel Al-Sisi. Esta provavelmente é a razão que o levou a responder pessoalmente às alegações de Ali, durante a Conferência da Juventude do Egito, organizada apressada e especificamente para lidar com a crise em curso.

Pode ser cedo demais para estimar o impacto generalizado dos movimentos de Sisi, mas é inquestionável que as condições impostas pelo vazio político resultante da imposição de limites e mais limites sobre as atividades políticas e da sociedade civil, ao lado da hegemonia do estado sobre os meios de comunicação, resultaram na exacerbação do fenômeno e no enfraquecimento da narrativa do presidente egípcio. Entretanto, é certo que a intervenção de Ali não é o último episódio desta sequência em potencial – “O Presidente e o Empreiteiro” –, que parece poder durar algumas temporadas.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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