“Talvez tenha chegado a hora para os palestinos e israelenses que desejam justiça imaginarem um novo futuro,” pressupõe o ensaio “Beyond Ethnic Nacionalism: Lessons from South Africa” (“Além do Nacionalismo Étnico: Lições da África do Sul”, em tradução livre), escrito pelos intelectuais sul-africanos Na’eem Jeenah e Salim Vally.
Este “novo futuro”, segundo Jeenah e Vally, “começará a ser construído quando surgir um consenso de que uma nova nação precisa ser forjada dentro de um novo estado”.
Ambos os autores são arquétipos do verdadeiro intelectual. Sua consistência moral, seja ao lutar por uma África do Sul genuinamente democrática e representativa ou por justiça e liberdade para o povo palestino, provou-se inabalável.
Tive o prazer de encontrá-los e conversar novamente com Jeenah e Vally durante minha última visita à África do Sul, em setembro de 2019.
Embora o principal objetivo de minha viagem fosse falar a diversos públicos sul-africanos sobre a questão palestina e os pontos em comum da luta de ambos os povos, também tive a chance de encontrar e debater com um grande número de ativistas muito bem reconhecidos em sua luta por justiça social e contra o apartheid, além de jovens acadêmicos e mesmo representantes comuns da população.
Por muitos e muitos anos, as trocas intelectuais entre sul-africanos e palestinos de fato influenciaram o discurso global sobre a Palestina. Isso não deve ser tratado como surpresa, no entanto. A comparação entre o apartheid sul-africano e israelense é tão contundente quanto óbvia.
Como outros estados coloniais de assentamento, Israel e África do Sul utilizaram políticas de genocídio, limpeza étnica e apartheid racial para avançar e preservar os interesses dos colonizadores enquanto oprime e marginaliza os direitos dos colonizados.
Tal compreensão é muito bem estabelecida entre os palestinos. O discurso de libertação palestina é dotado de referências ao sistema sul-africano de apartheid e à luta popular contra o regime racista que dominou o país africano até sua queda, em 1994. O movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) é em si próprio amplamente projetado conforme o movimento de boicote na África do Sul.
Entretanto, na pressa de delinear as similaridades entre as duas experiências – cuja origem é o próprio desejo, urgente e justificável, dos palestinos de conquistarem seu “momento África do Sul” – alguns pontos imediatos à discussão tornam-se omissos. Um destes pontos é o pressuposto equivocado dentre muitos observadores de que o desmantelamento oficial das leis do apartheid automaticamente levará a uma nova era de democracia e igualdade, pavimentando o caminho para a cobiçada solução de estado único.
O primeiro tópico urgente e absolutamente relevante a ser tratado é o fato da questão nacional.
“Embora possa ser tentador debater sobre o novo estado agora e deixar a questão de uma nova nação para algum estágio pós-libertação, isso pode incorrer em um grande erro,” afirmam Jeenah e Vally.
Na’eem Jeenah, diretor executivo do Centro Afro-Oriente Médio, com sede em Joanesburgo, contou-me que “um fracasso significativo no projeto de libertação da África do Sul foi a incapacidade de efetivamente abordar a questão nacional. Este fracasso, em grande medida, também ajudou a garantir a preservação das enormes distâncias socioeconômicas entre uma pequena elite e as grandes massas da população pobre.”
De fato, a desigualdade na África do Sul é tão gritante que, segundo um estudo recente do Banco Mundial, a sociedade local “permanece a mais economicamente desigual de todo o mundo” – uma triste realidade cujas raízes estão no sistema colonial de apartheid que continua a refletir-se em cada aspecto da vida no país. Isso significa que, embora as elites minoritárias brancas que dominaram a África do Sul por um longo tempo hoje sejam iguais aos pobres em termos legais, as grandes massas da população negra ainda vivem em situação de miséria nas cidades periféricas e nos antigos bantustões, de modo que o equilíbrio socioeconômico permanece basicamente o mesmo.
Samir Vally, autor reconhecido e professor da Universidade Joanesburgo, descreve a devastação deixada pela desigualdade enraizada na África do Sul. “De certo modo, embora os andaimes (leis de discriminação racial) tenham sido removidos, a fundação e a própria casa da desigualdade (e do capitalismo racial) sobrevivem ainda mais fortes do que no período anterior a 1994,” afirmou o professor.
O resultado trágico, embora previsível, é que “capitalistas brancos tradicionais, o capital global, uma camada de classe média negra e alguns poucos capitalistas negros são de fato hoje os beneficiários do sistema, às custas da ampla maioria.”
As negociações secretas de Oslo auxiliaram a pavimentar o caminho para uma versão palestina equivalente aos “capitalistas negros” e sua camada adjacente de “classe média negra”, como descrito por Vally.
A natureza condescendente de chegar a um acordo por meio de conversas secretas estabelece o tom para futuras abominações sistêmicas. O modelo de confidência se manteve ao incluir o componente econômico de Oslo – o chamado Protocolo de Paris, de 1994, transformados em Oslo II no ano seguinte.
“Diferente de Oslo, a maior parte do processo de negociações políticas na África do Sul foi feito de modo quase inteiramente transparente. É crucial que os processos de negociação em nome do povo incluam suas vozes de alguma maneira,” afirmou Jeenah. Lamentavelmente, os palestinos permanecem excluídos por completo deste processo, nada democrático, muito menos transparente.
“As negociações econômicas na África do sul, por outro lado, aconteceram amplamente a portas fechadas e longe do escrutínio do povo e das organizações da sociedade civil,” acrescentou Jeenah.
“Os resultados destes acordos ainda nos assombram hoje, pois vivemos em um país considerado um dos mais desiguais do mundo, com uma enorme taxa de desemprego e pobreza generalizada. Tais resultados significam que, embora uma pequena parcela da população negra tenha sido empurrada para a elite financeira, a enorme maioria do povo negro permanece abandonado na miséria e no sofrimento.”Para Israel e seus aliados de Washington, o chamado processo de paz – agora abandonado pois não tem mais qualquer utilidade – representou uma narrativa de sucesso. As questões menores relativas à segurança de Israel foram abordadas desde o princípio, e os assuntos verdadeiramente relevantes foram preteridos às “negociações de status finais.” A lógica utilizada na época buscou justificar que assuntos complexos devem ser tratados somente após “medidas que estabelecem confiança” serem alcançadas.
A experiência sul-africana nos ensina que tal lógica é absolutamente falsa porque todos os aspectos estão conectados e, de modo algum – em particular no que concerne à justiça, liberdade, igualdade etc –, devem ser desvinculados.
Por exemplo, no que se refere à “questão nacional,” Jeenah e Vally escreveram que se trata de um tópico a ser “empenhado e abordado imediatamente.”
“Deve estar sobre a mesa para resolução em qualquer processo de negociação cujo projeto é um novo futuro. Caso postergado, as consequências desastrosas para os palestinos e judeus israelenses poderão lançar a região em um lamaçal profundo e duradouro. Tais matérias foram adiadas na África do Sul e os sul-africanos vivem hoje com tais consequências.”
Segundo Jeenah, um erro bastante recorrente entre os palestinos no que se refere à sua estratégia é a ênfase excessiva no “movimento global anti-apartheid”, em lugar dos “próprios oprimidos”, que deveriam estar “liderando sua libertação”.
Jeenah acrescentou: “No caso palestino, há demasiada influência na forma, na pressão e na orientação da luta nacional e do movimento nacional por forças externas – muitas vezes hostis. Apesar das coisas estarem mudando, por um tempo nos pareceu que os palestinos jamais seriam os arquitetos de seu próprio destino. Isso abrange tudo, da visão do futuro às estratégias e táticas.”
Essencialmente, isso significa que os palestinos são absolutamente necessários nesse estágio transitório – o fim do “processo de paz”, a morte da chamada “solução de dois estados” etc –, para que se tome cuidado com quaisquer pressões externas que possam comprometer as formas de resistências.
“Em nosso caso, apesar das negociações começarem em 1990, o Congresso Nacional Africano (CNA) suspendeu a luta armada em 1993, também com o objetivo de reconquistar certa vantagem estratégica,” alertou Jeenah.
“Não importa qual visão os ativistas solidários possam ter sobre a luta armada, este foi o caminho escolhido por nosso povo e nossos movimentos populares, e não devemos comprometer este importante pilar de nossa luta (mesmo que seu efeito seja amplamente simbólico) a fim de satisfazer àqueles que nos são solidários.”
Infelizmente, não foi o caso da Palestina: “A solidariedade de ativistas em todo o mundo em relação à Palestina (e dos governos que alegam apoiar a luta do povo palestino) costuma cobrar demandas dos palestinos – especialmente no que se refere à luta armada.”
Jeenah afirmou que “a prontidão com a qual muitos grupos palestinos costumam mudar de postura, com base em que pede, é um obstáculo majoritário”
Vinte e cinco anos após o fim oficial do Apartheid na África do Sul, as lições desta experiência histórica tornam-se cada vez mais claras: a questão nacional é o principal; a desigualdade é um resultado intrínseco ao apartheid que deve ser abordado com a mesma urgência que a questão dos direitos políticos; transparência e inclusão são essenciais a qualquer negociação política legítima; e a verdadeira solidariedade não é condicional.
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