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Escritores convidados: A política internacional da África do Sul pós-apartheid sobre Israel e Palestina

Manifestantes da África do Sul protestam contra o tratamento de Israel aos palestinos, 2 de junho de 2018 [Twitter]

A política internacional e a postura diplomática da África do Sul em relação ao conflito Israel-Palestina é notavelmente firme desde o fim do regime de apartheid e da eleição de Nelson Mandela (1918-2013) como presidente em 1994. Não apenas a posição de Pretória permaneceu inalterada pelas diversas mudanças de governo e pela ascensão da África do Sul como “potência emergente” no cenário internacional, mas suas ações também se mantiveram consistentes, por vezes a custo de relações bilaterais com Israel.

O governo sul-africano de fato reconheceu o Estado da Palestina, declarou apoio ao movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) e apoiou as iniciativas diplomáticas palestinas. O Congresso Nacional Africano (CNA) e a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) desfrutam de relações históricas ao ponto de identificarem a si mesmos como “irmãos em armas”. Pretória também regularmente treinou diplomatas palestinos em um esforço para reequilibrar a assimetria de poderes na mesa de negociações.

Tais afinidades políticas contrastam enfaticamente com a enorme dificuldade e a oscilação das relações bilaterais com Israel, que tanto colaborou com o regime de apartheid, algo que não é esquecido tampouco perdoado pelo povo sul-africano. Entretanto, o direito de existir do Estado de Israel também sempre foi reiterado pelas sucessivas administrações da África do Sul.

Oficiais sul-africanos desenham um paralelo direto entre o antigo regime de apartheid e a ocupação israelense na Palestina. Assim como o chamado Movimento Não-Alinhado (MNA) – grupo de 115 países em desenvolvimento –, a África Sul considera a Palestina, ao lado do Saara Ocidental, como um processo de colonização não-acabado, de modo a priorizá-lo em sua política internacional desde a eleição de Mandela. Este paralelo é simbolizado pela célebre frase de 1997 do ex-presidente sul-africano: “Sabemos muito bem que nossa liberdade não está completa sem a liberdade do povo palestino.”

Pretória denuncia sistematicamente as práticas israelenses em fóruns multilaterais. A palavra “ocupação” apareceu mais de duzentas vezes nos discursos proferidos por representantes sul-africanos na ONU sobre a questão palestina desde 2000. Os “assentamentos” foram denunciados 189 vezes. “Direitos humanos” foi questão fundamental em 104 vezes. Isso é o dobro do uso em discursos proferidos por representantes do Brasil no mesmo período, outra “potência emergente” que supostamente age conforme o mesmo conceito moral de “diplomacia de princípios”.

Um número cada vez maior de agentes internacionais sul-africanos criticou o que hoje é conhecido como o “sonho perdido” ou “viés arquitetado” dos Acordos de Oslo, os quais estabeleceram a maior parte dos parâmetros para os chamados “processos de paz do Oriente Médio”. Este processo posterga-se por mais de 25 anos, paralisado pela assimetria de poderes na mesa de negociação, exacerbada pela figura dos Estados Unidos como mediador enviesado, por um Conselho de Segurança da ONU absolutamente neutralizado no que se refere ao assunto e um modelo de ajuda humanitária guiado pela ideologia de livre mercado. Ao predispor o desenvolvimento econômico como condição do processo político, o paradigma de “paz econômica” cada vez mais delongou o processo pois tornou os palestinos dependentes de auxílio internacional e mesmo da ocupação de Israel. Este modelo ajudou a reprimir a resistência palestina contra a ocupação à medida que limpou o caminho para a livre expansão dos assentamentos ilegais israelenses. Como resultado, apesar de estimativas sugerirem que os palestinos são um dos maiores receptores de auxílio não-militar per capita de todo o mundo, todos os indicadores demonstram que suas condições de vida são ainda piores do que aquelas anteriores a Oslo.

Seria lógico para a África do Sul não apoiar processos tão desfavoráveis aos aliados palestinos. Não obstante, Pretória chegou ao ponto de rejeitar abertamente todas as suas táticas e parâmetros oficiais.

“O apartheid ainda existe”. A África do Sul está ao lado da Palestina – cartum [Sabaaneh/Monitor dos Oriente Médio]

A mediação como método pacífico de resolução ao conflito se estabeleceu como prioridade à política internacional da África do Sul desde 1993 e elemento central da identidade estratégica do país. Oficiais sul-africanos criticam com frequência a mediação dos Estados Unidos, considerada tendenciosa em relação a Israel. A África do Sul também denunciou as sucessivas administrações americanas por agravar a assimetria de poderes ao constantemente apoiar e proteger o Estado de Israel de qualquer pressão externa, além de isolar outros aliados em potencial da causa palestina e deliberadamente impedir que Israel seja responsabilizado por seus deveres legais como potência ocupante, muito menos para encerrar a ocupação ilegal das terras palestinas.

Entretanto, críticos de Israel em Pretória sempre mantiveram uma postura de evitar confrontos, fundamentalmente não-oficial. Devido ao fato dos princípios de não-intervencionismo e respeito à soberania serem bastante estimados na África do Sul, Washington jamais foi denunciado nominalmente em seus discursos oficiais. Isso não impediu o país africano, porém, de criticar abertamente a paralisia de muitos mecanismos e entidades supranacionais, como o chamado Quarteto do Oriente Médio – criticado em 42 por cento das menções nos discursos sul-africanos na ONU, desde 2000 – e o próprio Conselho de Segurança das Nações Unidas – criticado em 43 por cento das menções. Tais instituições são denunciadas então como um fator que favorece o obstrucionismo americano.

A África do Sul sempre foi considerada por Israel como demasiadamente enviesada para participar ativamente da mediação do conflito. Devido ao fato da mediação ser um mecanismo não-vinculativo que depende da anuência de todas as partes, as ofertas sul-africanas a este respeito foram repetidamente declinadas ou mesmo ignoradas pelas autoridades de Israel. Pretória, no entanto, realizou algumas iniciativas. No dia de sua posse, Mandela recebeu em segredo o líder palestino Yasser Arafat (1929-2004) e o Presidente de Israel Ezer Weizman (1924-2005) em seu novo gabinete. O sucessor de Mandela, Thabo Mbeki deu início também aos processos diplomáticos da “Retirada Presidencial de Paz de Spier”, em janeiro de 2002, mas ambas as iniciativas fracassaram.

Pretória apresenta um apoio diplomático sistemático à Palestina em níveis supranacionais, ao agir como catalisador das posições palestinas no cenário internacional. A África do Sul deu início e apoio a diversos projetos de resoluções em favor da Palestina; compareceu em todos os encontros abertos do Conselho de Segurança da ONU para falar sobre o assunto; manteve um padrão de votos consistente e coerente desde 1994; apoiou o pedido palestino para o estabelecimento de um estado e a campanha diplomática “Palestina 194” para que a Palestina adquirisse status de membro ativo nas Nações Unidas, em 2004; defendeu os palestinos em todas as conferências de paz que participou; e utilizou de sua influência para responder às ofensivas diplomáticas israelenses mais recentes com o objetivo de afastar a causa palestina de suas relações com os países africanos.

Sul-africanos protestam em apoio ao movimento de BDS em Joanesburgo, no Dia de Al-Quds, 31 de maio de 2019 [Serviço de Notícias Afro-Palestino]

Oficialmente, a África do Sul denunciou ativamente sua rejeição todos os modelos de auxílio ocidentais, considerados enviesados em relação às agendas políticas das potências dominantes. Pretória oficialmente adere ao modelo alternativo de “Cooperação Sul-Sul” (CSS), tanto bilateralmente quanto por meio de alianças transnacionais como o fundo Índia-Brasil-África do Sul (IBSA). O governo sul-africano também prometeu comprometer-se com os princípios fundamentais do CSS no desenvolvimento de sua agenda diplomática.

Entretanto, tais princípios não são respeitados pela maioria dos grandes doadores ao sistema humanitário de Oslo na Palestina. Portanto, haveria uma boa razão para crer que a África do Sul enxerga esta negligência como um problema crítico do comprometimento destes países e instituições à causa palestina.

Não obstante, mesmo caso Pretória lembre-se bem que o auxílio sozinho não é resposta para a crise e que somente a solução política pode dar fim ao conflito, não costuma criticá-lo frontalmente ou mesmo rejeitar completamente o paradigma de paz econômica em discursos oficiais. O governo chegou ao ponto de demonstrar alguma ambivalência em relação a agentes operacionais bastante críticos, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, ambos dominados pelos Estados Unidos sob enorme influência de instituições neoliberais no que se refere ao projeto e à implementação de seus parâmetros econômicos de paz.

A efetivação dos princípios estabelecidos pela Cooperação Sul-Sul na distribuição da ajuda humanitária sul-africana também é difícil de analisar. Detalhes e indicadores cruciais destes auxílios quase não estão disponíveis. Isso provavelmente se dá devido tanto à falta de transparência – o que contraria propriamente os princípios da CSS – ou meramente à falta de documentos oficiais decorrente da carência de mecanismos eficientes de trabalho. A contribuição de Pretória a entidades humanitárias majoritárias, como a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) também é desprezível comparada a outros doadores tradicionais e não-tradicionais/emergentes.

A África do Sul oficialmente apoia o paradigma de “dois estados” e todas as resoluções da ONU que o estabelecem. Todavia, diplomatas sul-africanos mostram-se mais céticos quando perguntados sobre este modelo não oficialmente. Muitos já não acreditam na viabilidade de um estado independente palestino; alguns já desejam que as posturas palestinas se adaptem e deixem para trás o objetivo de “dois estados”, com foco na obtenção de direitos iguais em um estado único. O compromisso de Pretória ao não-intervencionismo, no entanto, impede qualquer pressão à OLP para que modifique sua agenda.

Além disso, as condições que levaram ao fim do apartheid e à transição para um estado único que garante direitos iguais a todos os seus cidadãos são bastante distintas das condições existentes nos territórios ocupados palestinos. A maioria dos israelenses vê a preservação do projeto sionista de um estado exclusivamente judaico como questão de vida e morte. Um estado único e binacional seria, nessa perspectiva ideológica, potencialmente prejudicial à própria existência do povo judeu.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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