Os curdos podem não ter ‘amigos senão as montanhas’, mas de fato têm Israel

Há um antigo provérbio que diz: “Os curdos não possuem amigos senão as montanhas”. Poético, comovente e trágico; mas não completamente verdade. Apesar da grande imprensa do Ocidente lamentar a recente “traição” do governo americano em relação aos aliados curdos, há ainda um último aliado que mantém uma relação consistente com o movimento curdo: Israel.

Um dia após a Turquia lançar sua Operação Nascente de Paz, em 9 de outubro, logo em sequência ao anúncio do presidente americano Donald Trump de que retiraria suas tropas do nordeste da Síria, o Primeiro-Ministro de Israel Benjamin Netanyahu “condenou fortemente” a invasão turca contra o “intrépido povo curdo” e alertou para os perigos da limpeza étnica. Netanyahu também afirmou que Israel está preparado para estender o auxílio humanitário aos curdos. Entretanto, como observou o jornal israelense Haaretz, há um silêncio retumbante de Netanyahu sobre o abandono efetivo de Trump aos aliados curdos, de modo a relegá-los a um destino nas mãos do segundo maior exército da OTAN.

Relações curdo-israelenses

As relações entre os curdos e Israel não são nenhum segredo. Laços entre as duas partes retornam à década de 1960, quando Israel ofereceu auxílio humanitário e militar aos curdos, até 1975. O compromisso israelense teve um fim abrupto após o acordo assinado entre o Iraque e a república pré-islâmica do Irã, liderada pelo xá pró-Ocidente Mohammad Reza Pahlavi (também próximo de Israel), logo depois deste último declarar apoio aos separatistas curdo-iraquianos. Relações foram então retomadas discretamente nos anos seguintes, tornando-se mais proeminentes após a invasão e ocupação dos Estados Unidos ao Iraque, em 2003, na forma de uma base israelense utilizada para facilitar o treinamento de tropas curdas. Israel possuía um interesse estratégico neste apoio, como contrapeso aos grupos sunitas e xiitas no Iraque. O envolvimento na região também deu a Israel um melhor acesso à inteligência síria e iraniana. O líder curdo-iraquiano Mustafa Barzani disse uma vez sobre Israel: “Não há outro país a quem os curdos devem mais.” Ele também relatou a um emissário israelense que “somente os judeus se preocupam com os curdos.”

Não é surpresa, então, que Israel tenha sido tão vocal em seu apoio a um estado independente do Curdistão, principalmente para agir como um estado-tampão que o proteja de seus adversários árabes e de seu arquirrival Irã, que possui também sua própria população curda. É, entretanto, fácil de esquecer que houve um tempo no qual o aliado mais importante de Israel na região era a Turquia, o primeiro país de maioria islâmica a reconhecer o estado sionista, em 1949. Tais relações, como aquelas do Irã pré-revolucionário, foram estabelecidas em tempos mais seculares, quando a ideologia de Kemal Ataturk – considerado fundador do moderno estado turco – ainda estava entrincheirada na sociedade e nas políticas turcas. Sob o Partido Justiça e Desenvolvimento (AK) do presidente Recep Tayyp Erdogan, a Turquia tornou-se cada vez mais voltada ao Oriente e menos secular (embora pesquisas sugiram o contrário). As relações então declinaram diante dos ataques à chamada Flotilha da Liberdade (Mavi Marmara), em 2010, quando unidades especiais israelenses mataram nove ativistas de direitos humanos que levavam auxílio humanitário à Faixa de Gaza sitiada, além de ferir muitos outros (um décimo ativista faleceu dos ferimentos). Ainda a fim de manter relações com a Turquia, Israel decidiu assumir o mesmo ponto de vista de Estados Unidos e União Europeia e designou o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) como uma organização terrorista.

Deste modo, o relacionamento entre partes complicou-se ainda mais quando o Departamento de Estado dos Estados Unidos decidiu declarar as chamadas Forças Democráticas da Síria, que incluem o grupo paramilitar curdo-sírio Unidades de Proteção Popular (YPG), como um “ramo sírio do PKK” – isto é, organização terrorista. Washington então, afinal, modificou sua abordagem referente à milícia curda na Síria para encorajá-los a mudar de nome a fim de que se afastassem do PKK.

A atual aliança entre o YPG e o governo sírio é meramente pragmática, considerando que os curdos não possuem ninguém que os proteja contra a ofensiva turca, cujo objetivo é estabelecer uma zona de segurança para refugiados na região de fronteira; ainda assim, demonstraram mais outra vez que sua postura em relação à guerra civil na Síria é bastante volúvel. No verão de 2016, e não pela primeira vez no conflito (primeiramente, em 2012), o YPG entrou em confronto na cidade de Aleppo com o chamado Exército Livre da Síria (ELS), apoiado pela Turquia. Os rebeldes acusaram o YPG de colaborar com o governo sírio e conspirar contra eles, em contraponto a uma operação conjunta estabelecida entre o YPG e o ELS na cidade de Kobane, como esforço para combater a então ameaça emergente do Estado Islâmico (Daesh).

Temos agora uma situação na qual o ELS – que inclui jihadistas em suas fileiras, agora reformado como “Exército Nacional da Síria” – lidera uma ofensiva em solo contra o YPG. No momento em que este artigo foi escrito, um cessar-fogo bastante frágil de cinco dias está em curso, a fim de conceder algum tempo para que o YPG retire suas tropas do local, embora haja relatos de que o acordo já foi rompido.

Trump recebe inúmeras críticas da grande mídia, mas em raras ocasiões é capaz de revelar verdades nuas e cruas. Como a vez em que afirmou que a monarquia saudita não duraria duas semanas sem a proteção americana, por exemplo. Agora ele destaca que os curdos “não são anjos”, o que vai contra a mensagem da grande imprensa à medida que autoridades e figuras políticas esgoelam-se para condenar a traição de Trump em relação aos curdos. Quase como quem não quer nada, Trump declarou que o PKK é ainda pior que o Daesh. Ele pode até estar certo, dado que a facção síria do movimento está disposta a libertar os prisioneiros do Daesh, sabendo muito bem dos possíveis impactos desta decisão. Os curdos também cometeram crimes em aldeias árabes nas áreas sob seu controle, além de perseguições contra árabes cristãos.

Após a retirada curdo-iraquiana de Kirkuk, em 2017, tornou-se claro que a comunidade internacional não estava interessada em um estado independente do Curdistão. Não apenas os curdos se espalharam por Irã, Turquia, Iraque e Síria – entre os quais, duas potências regionais – como também estabeleceram relações com Israel e com qualquer outro grupo externo que lhes fosse conveniente no momento. Isso concede a um possível estado do Curdistão um caráter não confiável.

Uma retirada completa das tropas americanas na Síria pode ser desastrosa para os planos sionistas já documentados de impor uma “balcanização” da Síria e do restante do Oriente Médio, razão pela qual Israel exigiu que uma base americana próxima à fronteira com a Jordânia permaneça aberta, a fim de servir como obstáculo imposto ao corredor Irã-Síria-Líbano. Sobretudo, em outro dos descuidos de Trump, os Estados Unidos ainda mantêm o controle sobre campos de petróleo no leste da Síria. Apesar do presidente americano saber muito bem que ainda os controla, é inevitável que tenha de abandoná-los, pois o Exército da Síria retoma seu território com apoio russo, o que deixa Washington em posição insustentável.

Além disso, mapas revelam que a população curda no território sírio passaram a ocupar mais terras a leste do Rio Eufrates do que é considerado seu território histórico. Já vimos algo semelhante antes na região e continuamos a testemunhar tais eventos até hoje.

À medida que os curdos navegam por uma miríade de alianças de curto prazo – frequentemente, sob falsas promessas de criação de um estado ou de autonomia, ou ainda proteção de qualquer ameaça existencial –, é sempre provável que sejam traídos. Infelizmente para eles, voltam a ser usados pelo Ocidente como peões contra a ameaça da vez, em um projeto imperial que fracassa dia após dia.

Não obstante, a grande constante com a qual podem contar é o apoio de Israel. Portanto, um estado do Curdistão só poderia ser um fantoche israelense, pois a fragmentação dos estados árabes serve muito bem ao chamado Plano Yinon para estabelecer um Grande Israel, na esperança de que “estados sectários tornem-se satélites israelenses e, ironicamente, fonte de legitimação moral”.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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