Escutar Angela Davis para enfrentar o pacto de sangue Bolsonaro-Israel

Neste 15 de dezembro começou a funcionar o escritório comercial brasileiro em Jerusalém, na Palestina ocupada. Anunciado por Bolsonaro no dia 31 de março último, ao início de sua viagem para se encontrar, nas suas palavras, com o “irmão” Benjamin Netanyahu – então primeiro-ministro israelense – é mais um passo na consolidação da cumplicidade histórica do Brasil com a colonização da Palestina.

Nesse pacto de sangue, ainda durante a viagem – acompanhada de “missão empresarial brasileira” –, foram assinados cinco acordos com Israel. A informação consta de “declaração conjunta” assinalada como Nota 81 do Itamaraty: “Os dois líderes [Bolsonaro e Netanyahu] decidiram alçar as relações bilaterais a um novo nível de prioridade, construindo sobre os sólidos vínculos históricos entre os dois países desde a criação de Israel, como demonstra a conclusão de vários instrumentos bilaterais de cooperação, nos campos da ciência e tecnologia; defesa; segurança pública; aviação civil; segurança cibernética; e saúde. Ambos os Governos tomarão as medidas necessárias para cumprir e implementar os acordos recém-assinados nos campos acima mencionados.”

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escritório em Jerusalém é parte fundamental desse esforço. A Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) é responsável por sua instalação. Segundo esse órgão, o objetivo é “fortalecer a parceria com o país [Israel] nos temas de inovação, tecnologia e investimentos”. Entre os focos, “soluções voltadas ao agronegócio e ao uso de água e, ainda, avanços em cibersegurança para defesa de clientes, proteção de dados e aplicação militar”. Os acordos para cooperação nas áreas de defesa e C&T constavam da pauta da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, presidida pelo deputado Eduardo Bolsonaro, desde 10 de dezembro. Enfrentando obstrução da oposição e a mobilização de mais de 50 organizações da sociedade civil brasileira, a tentativa de aprová-los ali foi derrotada. Uma vitória importante da solidariedade e justo rechaço, uma vez que acordos como esse podem representar a tal almejada expansão nas relações bilaterais que sustentam a criminosa ocupação da Palestina, já que a economia israelense é fortemente baseada nas exportações – 70% do que produz tem esse destino. O Brasil já se notabiliza nesse campo: lamentavelmente tornou-se nos últimos anos o quinto maior importador de tecnologia militar israelense.

Desumanização

A Nota 81 afirma que essa parceria “está alicerçada sobre valores comuns da liberdade, da democracia, da economia de mercado, da justiça e da paz, e sua determinação comum de buscar a prosperidade para seus povos”. Uma afronta às vítimas das tecnologias militares como resultado dessa “parceria” – sejam palestinos, que se transformaram em “cobaias” para testes de armas que seguem depois para exportação, sejam negros e pobres nas periferias brasileiras, em que são utilizadas depois ao genocídio. As supostas “democracia” e “liberdade” apregoadas encontram eco no falacioso discurso do projeto colonial sionista para manter suas políticas discriminatórias e ocupação ilegal. Retórica que despreza e desumaniza, sob o falso manto de “civilização”. Visão que não sobrevive a uma mínima análise da realidade.

Em “Israel”, os 1,5 milhão de palestinos remanescentes estão submetidos a mais de 50 leis racistas. Há dezenas de aldeias beduínas no Naqab (Negev), por exemplo, ao sul, em que não chegam sequer serviços básicos essenciais, como água, eletricidade, saúde e educação. Enfrentam proibição de construção de estruturas residenciais permanentes e, consequentemente, demolição constante de suas casas por Israel. Alguns vilarejos, como Al Arakeeb, já foram destruídos mais de 160 vezes – e a população os reconstrói, recusando-se a deixar suas terras originais.

Na Cisjordânia, Palestina ocupada em 1967, 2,4 milhões de habitantes enfrentam violação cotidiana de seus direitos humanos fundamentais (ir e vir, transporte, saúde, trabalho, educação). Um aparato militar composto por um muro de segregação, centenas de check points e assentamentos ilegais israelenses garante o regime institucionalizado de apartheid, que abrange, entre outros mecanismos, diferenciação de placas e documentos, estradas exclusivas para colonos e desigualdade criminosa na distribuição da água. Há cerca de 5 mil presos políticos palestinos, como parte desse sistema de ocupação.

Em Gaza, também ocupada em 1967, os 2 milhões de habitantes enfrentam dramática crise humanitária, acentuada por cerco israelense há 12 anos, em que nada entra ou sai sem a permissão sionista, seja material de construção, escolar ou medicamentos. São apenas quatro horas de eletricidade por dia. Noventa e seis por cento da água potável está contaminada. Metade das crianças enfrenta grave quadro de desnutrição crônica, em meio a bombardeios frequentes. A própria Organização das Nações Unidas (ONU) alerta que a estreita faixa pode se tornar inabitável já em 2020.

Essa sociedade fragmentada inclui ainda 5 milhões de refugiados em campos a um raio de 150km da Palestina histórica, impedidos do legítimo retorno de retornar as suas terras, além de milhares na diáspora. Portanto, para todo esse contingente, afirmar que os valores norteadores são “justiça”, “paz”, “democracia”, “liberdade”, “prosperidade” não passa de piada de mau gosto.

Cumplicidade histórica

Mas esses não são os únicos mitos constantes da declaração conjunta. Na Nota 81, descreve-se: “Israel lembrou com apreço o papel fundamental desempenhado pelo Brasil durante a Assembleia Geral das Nações Unidas que aprovou a Resolução 181, em 1947, sob a presidência do ex-Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Oswaldo Aranha, abrindo caminho para a recriação do Estado de Israel na terra ancestral do povo judeu, em 14 de maio de 1948.” Também destaca que o Brasil “relembrou que Jerusalém tem sido parte inseparável da identidade do povo judeu por mais de três milênios e se tornou o coração político do moderno e pujante Estado de Israel. Nesse espírito, e 72 anos depois de participar do primeiro capítulo da recriação do Estado de Israel, o Brasil decidiu estabelecer um escritório em Jerusalém para a promoção do comércio, investimento, tecnologia e inovação, a ser coordenado pelo Ministério das Relações Exteriores”.

O que Bolsonaro e Netanyahu dizem lembrar não passa de falsificação histórica – como já amplamente comprovado inclusive por historiadores israelenses. Ademais, desrespeita a memória das vítimas da Nakba (catástrofe palestina com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada). Ao reavivar mitos fundantes do projeto colonial sionista, como a ideia de “recriação do Estado judeu” e de “Jerusalém como parte inseparável da identidade do povo judeu por mais de três milênios”, o Brasil no mínimo passa vergonha internacionalmente. O que houve na Palestina não tem nada a ver com essas representações. Como afirma o escritor e ativista israelense Miko Peled foi um crime. A palavra é colonização.

Se há alguma verdade no documento, mesmo que mantendo a mitologia reinante, é quanto ao “papel fundamental desempenhado pelo Brasil” à recomendação pela Assembleia Geral das Nações Unidas de partilha da Palestina em um estado judeu e um árabe, sem consulta aos habitantes nativos. Esse resultado representou sinal verde à limpeza étnica da Palestina pelo sionismo – a consequência foi a Nakba, com um Estado colonial se erguendo sobre os escombros, corpos e lágrimas palestinos: 800 mil palestinos foram expulsos de suas terras e mais de 500 vilarejos foram destruídos. Uma das maiores injustiças da era contemporânea, que continua ainda hoje, com a cumplicidade agora explícita e orgulhosa do Brasil.

Resistência

No rechaço a essa parceria e denúncia do seu significado, é urgente fortalecer a resistência e apoio efetivo aos palestinos. O que implica desafiar a violência policial e militarização ao redor do mundo com a colaboração de Israel. É o que apontou a ativista estadunidense e escritora Angela Davis em sua visita recente ao Brasil, ao afirmar que os movimentos sociais e populares aprendem com a resistência palestina e que o caminho é a internacionalização das lutas contra a opressão e exploração. “É preciso criar essa conexão. Os palestinos foram os primeiros a se solidarizarem contra a violência policial em Ferguson [EUA, em 2014] e isso impulsionou movimento internacional”, exemplificou ela, que é apoiadora da campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) a Israel, durante coletiva de imprensa em São Paulo. Para que todos sejam livres. Para que não mais haja massacres como em Paraisópolis e nas favelas do Rio de Janeiro.

Esse movimento chamado por Davis ganha força sobretudo nessas comunidades fluminenses. Ali, são mais de 1.500 assassinados somente neste ano, inclusive com armas, táticas e treinamento israelenses. No seu objetivo de “atirar na cabecinha”, o governador Wilson Witzel foi buscar aliança com especialista em genocídio e limpeza étnica. O resultado não poderia ser outro: sangue, dor e lágrimas de muitas mães e familiares, no Rio de Janeiro e na Palestina. Mas também a força e coragem de quem não tem nada a perder e não abandona a luta por justiça. Desafiam parcerias criminosas ao lembrar diariamente que vidas negras importam. Vidas palestinas importam.

Artigo publicado originalmente na Revista Carta Capital

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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