Conflito entre Irã e Estados Unidos: encoberto pela névoa da guerra

O assassinato ilegal do general iraniano Qasem Soleimani e de Abu Mahdi Al-Muhandis, vice-comandante iraquiano do Hashd Al-Shaabi (Forças de Mobilização Popular), no início deste mês, foi baseado em alegações de “ameaça iminente”. O Presidente dos Estados Unidos Donald Trump declarou que Soleimani, chefe das Forças al-Quds, unidade de elite iraniana, planejava ataques contra americanos, em particular, contra quatro embaixadas dos Estados Unidos.

Na realidade, Mike Pompeo – Secretário de Estado de Trump – desde então admitiu que não sabia quando ou onde tais ataques ocorreriam. Mark Esper, Secretário de Defesa, reconheceu que o presidente não lhe apresentou a mínima evidência de tais ameaças: “O presidente não citou uma evidência específica. Ele disse que acreditava.”

Novas questões sobre a inteligência e o planejamento estratégico militar dos Estados Unidos que levou ao ataque a drones MQ-9 Reaper foram trazidas por novos comentários do próprio Donald Trump, que reduziu a importância de quaisquer supostas ameaças, ao afirmar no Twitter que nada disso importava “devido ao seu passado horrível!”

Há pouco, também se descobriu que Trump ordenou a execução de outro comandante das Forças al-Quds, Abdul Reza Shahlai, localizado no Iêmen; entretanto, esta tentativa de assassinato fracassou e um outro oficial de menor escalão morreu em seu lugar. O Wall Street Journal também reportou que Trump confessou a seus associados que estava “sob pressão para lidar com o general Soleimani de senadores republicanos, que considera apoiadores importantes no decorrer do julgamento de impeachment que avançou ao Senado.” Isso confirma o que muitos observadores já haviam postulado antes.

Diante do assassinato, argumentei que Trump não está ciente das implicações de sua decisão, uma preocupação compartilhada até mesmo por diversos oficiais americanos. Ao falar das ações de Trump, um diplomata a serviço na região recentemente realocado pelas autoridades americanas relatou ao site de notícias Vox que lhe parece que a operação não foi planejada, mas sim “inventada”, e reiterou que, caso o Irã decida atacar os postos avançados dos Estados Unidos nas proximidades com foguetes, “estamos provavelmente fodidos.”

A resposta inicial Guarda Revolucionário do Irã representou a primeira vez que um país decidiu enfrentar abertamente uma agressão americana desde o fim da Guerra Fria. Até os anos recentes, a maioria dos ataques contra funcionários ou instalações militares dos Estados Unidos eram executados por agentes não-estatais. O Irã lançou, porém, uma dúzia de mísseis balísticos contra diversos alvos americanos no Iraque. Está claro que o Irã buscou apresentar uma resposta “proporcional”, caso os relatos de pedidos americanos via Suíça sejam confiáveis.

Também está claro que o Irã deliberadamente escolheu seus alvos para minimizar os danos, se não evitar as baixas americanas, mas também para ilustrar as capacidades militares do Irã, com uma precisão surpreendente – hangares, depósitos e armazéns foram especificamente atingidos, de modo que os alvos principais tenham sido sua “máquina de guerra” localizada. A resposta iraniana tanto representou um jogo de aparências quanto meios para oferecer uma proposta de desescalada, a qual parece ter sido aceita pelos Estados Unidos, ao menos por ora. As autoridades americanas também receberam alertas que antecederam os ataques, pois o Iraque foi informado por Teerã sobre as operações retaliatórias a seguir.

Contrário às alegações da mídia coordenada pela Arábia Saudita que buscam implicar o Catar nos ataques aéreos, o comandante da Guarda Revolucionária do Irã, Amir Ali Hajizadeh, declarou em coletiva de imprensa (com bandeiras da aliança do Eixo de Resistência do Irã logo às suas costas) que as duas bases no Iraque atingidas – uma pertencente à Jordânia, outra ao Kuwait – estiveram “envolvidas” no “ataque terrorista” dos Estados Unidos contra Soleimani.

Embora a administração de Trump tenha declarado que não houve baixas ou mortes, algumas mídias iranianas relataram que ao menos 80 soldados morreram. Relatos de testemunhas também sugeriram que os feridos foram levados a hospitais na Jordânia e em Israel. Tais informações não foram verificadas de modo independente; entretanto, um repórter da CNN que eventualmente foi autorizado a entrar na base aérea de Ain Al-Assad, na província iraquiana de Anbar, atingida pesadamente, observou ser “realmente extraordinário que qualquer um tenha conseguido sobreviver, que não houve baixas.” Hajizadeh afirmou que, embora sua corporação tenha capacidade e inteligência para localizar os oficiais operantes na região, estes não eram os alvos primários do ataque. Todavia, alegou baixas.

Tragicamente, a derrubada do voo 752 da Ukraine International Airline, perto do Aeroporto Imam Khomeini, em Teerã, reverteu os ganhos políticos conquistados pelo Irã imediatamente após o assassinato de Soleimani – representado pelo massivo apoio popular entre os iranianos, quando cerca de 25 milhões de pessoas participaram das procissões funerais em cinco cidades distintas. A atenção posta sobre os ataques a mísseis do Irã, parte da “dura vingança” prometida pelo Líder Supremo, teve vida curta à medida que os detalhes lúgubres do acidente chegavam à mídia convencional. Não demorou para que a cobertura internacional abandonasse a análise sobre as implicações dos ataques a bases americanas – de fato, houve praticamente um apagão midiático nos dias seguintes.

Entretanto, o alto índice de mortalidade entre civis justificou o foco e o escrutínio. O Irã inicialmente alegou que o avião caiu devido a falha técnica, mas a grande pressão resultou em investigações e o vazamento de um registro de vídeo logo forçou as autoridades iranianas a admitir a culpa e declarar que a aeronave de carreira foi atingida não-intencionalmente, em parte como forma de controlar a narrativa antes que os Estados Unidos pudessem fazê-lo. Até então, não obstante, o dano causado mobilizou centenas de manifestantes indignados com o encobrimento dos fatos sobre o incidente.

Embora prisões tenham sido feitas, há ainda argumentos postos sobre o fato de que o Irã estava então em alerta máximo – em particular, na incerteza da guerra – e, portanto, esperavam um contra-ataque americano, de modo que atiraram contra a aeronave equivocadamente, especialmente após uma série de tuítes imprevisíveis da Casa Branca que ameaçaram destruir 52 sítios culturais do Irã. Evidentemente, isso não justifica a derrubada de aviões civis.

Um incidente similar ocorreu em agosto de 2010, um jato combatente F-4 Phantom da Força Aéreo Iraniana entrou por engano em uma zona de exclusão aérea de 20 quilômetros de extensão ao redor da Usina Nuclear de Bushehr, inaugurada na época e guarnecida pelas Forças Armadas do Irã sob alerta máximo. Supostamente devido a falha de comunicação, unidades Tor-M1 confundiram o jato aliado com um alvo hostil e efetivamente o derrubaram. Os pilotos iranianos conseguiram ejetar e sobreviver ao incidente. Também relataram falhas de comunicação no caso recente, o que supostamente deixou apenas dez segundos para que o operador dos mísseis tomasse uma decisão, após o transponder do voo 752 deixar de funcionar, não muito depois da decolagem, aparentemente em direção à postos estratégicos militares, segundo a imprensa iraniana.

Em 2012, o jornal israelense The Jerusalem Post, citando fontes do WikiLeaks, reportou que a Rússia forneceu códigos de segurança a Israel para acessar sistemas de defesa aérea adquiridos pelo Irã em troca de códigos israelenses para “hackear” drones vendidos à Geórgia. De maneira bastante preocupante, um artigo de 2017 da revista Aviation Today revelou que um oficial do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos admitiu que sua equipe de especialistas foi bem sucedida em demonstrar que uma aeronave comercial poderia ser remotamente hackeada em um ambiente não-laboratorial.

O registro de vídeo original utilizado como evidência da responsabilidade iraniana sobre a queda do avião de carreira foi divulgado pelo New York Times, repassado para o jornal americano por Nariman Gharib, dissidente iraniano residente em Londres, a partir de uma fonte anônima que gravou o vídeo a partir de uma área industrial abandonada por volta das 6h da manhã, quando então filmava tranquilamente o céu noturno, como se previsse o incidente. É justo supor que há mais questões que resposta até então.

É importante observar que os ataques a mísseis iranianos foram as primeiras respostas, um mero “tapa na cara”, como disse o próprio Aiatolá Sayyd Ali Khamenei. Um comandante da Guarda Revolucionária do Irã também declarou que “vinganças mais duras” estão por vir. O conflito não está encerrado, de modo algum; apenas começou. Trump adotou então ainda mais sanções contra uma nação bastante acostumada a tais atos de terrorismo econômico.

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Diversas facções iraquianas pedem pela formação de um fronte unitário contra a presença dos Estados Unidos no país – outros ataques contra forças americanas são esperados agora que o governo de Trump, previsivelmente, escolheu sabotar a democracia e a soberania iraquianas ao ignorar os requerimentos parlamentares para retirar suas tropas do país; ao fazê-lo, Trump , portanto, restitui a elas o status de força ocupante ilegal. O Exército do Iraque, que inclui as forças Hashd, tem razão em responder à agressão americana – os ataques contra as posições do Hashd no mês passado, perto da fronteira entre Síria e Iraque, mataram mais oficiais iraquianos do que combatentes do Hashd. O grupo paramilitar ainda não respondeu oficialmente ao assassinato de seu vice-comandante, Al-Muhandis, mas prometeu retaliar.

Os Estados Unidos então decidiu chantagear o Iraque por vias econômicas, caso insista na expulsão das forças americanas, o que enfatiza mais uma vez seu caráter como estado bandoleiro. As autoridades americanas chegaram ao ponto de ameaçar congelar as receitas de petróleo iraquianas mantidas no Banco da Reserva Federal, em Nova Iorque. Em oposição, a Arábia Saudita manteve seus pagamentos de defesa, cerca de US$ 1 bilhão segundo Trump em entrevista recente, a fim de enviar mais e mais tropas americanas e implementar a segurança da monarquia saudita em uma região cada vez mais volátil.

O levante civil apoiado pelos Estados Unidos continuará a crescer e explorar as indignações populares legítimas contra o governo iraquiano. Adil Abdel-Mahdi, primeiro-ministro em exercício, supostamente também fez comentários no parlamento que não foram divulgados amplamente, segundo os quais os Estados Unidos exigiram até 50 por cento do lucro do petróleo iraquiano em troca da reconstrução do país. Mahdi declarou que recusou a oferta e preferiu optar por um acordo com a China. Ao retornar da China, Trump ameaçou Mahdi com manifestações massivos que deporiam seu governo.

É fácil ignorar o fato de que o Daesh (Estado Islâmico) buscará capitalizar, no mínimo, devido à ausência da liderança militar de Soleimani na região. Sem dúvida, Soleimani e as forças Hashd exerceram enorme papel ao derrotar o Daesh. A rede de notícias americana CNN reconheceu as contribuições do general contra o grupo terrorista há três anos atrás.

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Por ora, entretanto, houve ataques oportunistas contra posições do Hashd após os ataques americanos. Israel, por exemplo, bombardeou combatentes do Hashd na fronteira entre Iraque e Síria, presentes no local para combater o Daesh. É como se cumprissem o papel não-oficial de força aérea do Daesh. Não será surpresa alguma quando os líderes regionais começarem a reclamar do ressurgimento do Daesh.

A ordem de Trump para eliminar Soleimani pode até ter sido um sucesso tático e operacional, mas seu valor estratégico pode ser menos produtivo. A Guarda Revolucionária do Irã não depende apenas de uma pessoa. De fato, é seguro dizer que Trump não possui qualquer estratégia substancial. A visão estratégica do Irã não se refere a um confronto convencional pleno com os Estados Unidos, mas busca de fato a retirada das tropas americanas do Sudoeste Asiático, área natural de influência do Irã. Para que isso efetivamente se realize, o Irã – como questão lógica de segurança de estado – deve continuar a trabalhar em suas capacidades de dissuasão.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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