A cúpula sobre paz internacional realizada em Berlim neste domingo (19), com o objetivo de encontrar uma solução para o atual conflito na Líbia, entre o Governo de União Nacional – reconhecido pela ONU, embora interino –, liderado por Fayez Al-Sarraj, e os grupos filiados ao comandante militar renegado Khalifa Haftar – apoiado por Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Rússia, França, Itália, entre outros – negligenciou em absoluto os interesses do povo líbio, e concentrou-se em servir os estados estrangeiros e seus agentes por procuração.
Haftar possui fortes relações com a Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos; porém, fracassou ao tentar depor, em 2014, o então parlamento líbio do Congresso Geral Nacional (CGN), cujo mandato provisório ainda estava válido após a queda do longevo ditador Muammar Gaddafi, em 2011. Em 25 de junho de 2014, o novo parlamento foi eleito com comparecimento nas urnas de apenas 18 por cento, comparado a 60 por cento para o Congresso Geral Nacional. Por diversas razões, a Suprema Corte Constitucional da Líbia determinou, em 6 de novembro de 2014, inconstitucionalidade para as novas eleições e o parlamento foi, portanto, dissolvido.
Mais tarde, ainda no mesmo ano, o Congresso Geral Nacional foi restaurado, mas Haftar e seus aliados no novo parlamento rejeitaram tais medidas e desde então estabeleceram seu próprio “parlamento” na cidade de Tobruk, no leste do país. A Organização das Nações Unidas, entretanto, decidiu auxiliar na formação de um governo interino liderado por Al-Sarraj e então o reconheceu. No fim de 2015, o Congresso Geral Nacional, em Trípoli, e Câmara dos Representantes em Tobruk assinaram um acordo político na cidade de Skhirat, Marrocos, responsável por estabelecer o atual Governo de União Nacional. No entanto, em 17 de dezembro de 2017, Haftar decidiu declarar nulo o acordo previamente assinado.
Diversas tentativas de chegar a um novo acordo entre as partes fracassaram reiteradamente. Desde abril de 2019, as forças de Haftar tentam capturar Trípoli, capital e maior cidade do país. Nenhum estado, exceto a Turquia, efetivamente tentou interromper as agressões de Haftar ou auxiliar na manutenção do governo reconhecido pela Organização das Nações Unidas. A ONU retraiu-se somente a anunciar um embargo sobre o fornecimento de armas a qualquer lado do conflito.
Enquanto isso, diversas potências regionais e internacionais mantiveram o apoio e o acolhimento aos planos de Haftar. Tais forças estrangeiras violaram o embargo das Nações Unidas ao ponto de enviar equipamentos militares avançados e mesmo tropas para auxiliar o comandante líbio dissidente. Mais de 2.000 pessoas foram mortas e outras 120.000 foram deslocadas desde o início da campanha de Haftar contra Trípoli. Diversas cidades, muitas das quais abrigam refinarias de petróleo, foram capturadas pelas forças de Haftar durante o processo.
Com este impasse político e militar, o país foi assolado pelo caos, insegurança e instabilidade. O povo líbio será grato a qualquer um que o ajude a estabilizar sua nação, normalizar suas condições de vida e permitir o progresso da democracia. Parece evidente que a população líbia não está disposta a retornar a uma ditadura como aquela de Muammar Gaddafi ou qualquer um de seus generais, como Khalifa Haftar.
A conferência de Berlim foi então anunciada, diante do fracasso de um encontro prévio em Moscou, na última semana, no qual Haftar recusou-se a assinar um acordo de cessar-fogo com o Governo de União Nacional. Prontamente, as autoridades da Alemanha decidiram declarar que reuniriam os líderes dos países envolvidos na questão líbia para que enfim respeitem o embargo de armas da ONU e cheguem a um novo armistício. Entretanto, embora as partes envolvidas tenham comparecido à conferência em Berlim, não demonstraram – junto da ONU – efetivamente qualquer interesse em solucionar o conflito, estabilizar o país e ajudar a população da Líbia; não apresentaram qualquer resolução tangível para dar fim à crise. Seus comentários demonstraram, não obstante, que a produção de petróleo de fato era a prioridade, em detrimento do povo líbio.
Segundo a Chanceler da Alemanha Angela Merkel, os líderes que participaram do encontro concordaram em não fornecer qualquer apoio militar às partes em conflito na Líbia. É necessário questionar: Será possível manter a palavra, dado o desrespeito prévio das potências estrangeiras – que tanto auxiliam Haftar – em relação ao embargo de armas imposto pelo Conselho de Segurança da ONU, que representa quase 200 países, em contraponto a estes poucos que compareceram em Berlim?
Merkel reconheceu que um acordo não pôde ser alcançado devido aos obstáculos impostos por Haftar, mas destacou claramente, no fim do encontro, que seu país deseja a justa distribuição dos recursos de petróleo entre Trípoli e Tobruk. Por que sequer mencionar a “justa” distribuição de tais recursos? Por que a conferência de Berlim não decidiu insistir em conceder tais direitos ao governo reconhecido internacionalmente? Por que negligenciou todos os apelos para que Haftar pare de atacar a capital ou mesmo para que o general dissidente seja devidamente preso? Evidentemente, porque a veterana política alemã não deseja complicar as coisas para sua maior produtora de petróleo cru e gás natural, a Wintershall Holding GmbH, empresa estrangeira do tipo há mais tempo estabelecida no território líbio. A Alemanha acredita que qualquer intervenção estrangeira perpetuará o conflito e que, caso haja “justa” distribuição dos recursos de petróleo entre as duas instituições rivais no país, isso não apenas manterá a produção e distribuição de petróleo como também garantirá um ambiente mais estável para a Wintershell.
A declaração final da conferência resumiu-se a reiterar a importância de transformar a trégua atual – cotidianamente violada por Haftar – em um cessar-fogo permanente. Ninguém foi responsabilizado ou culpabilizado por violar os embargos das Nações Unidas ao contrabandear armas e conceder apoio aos ataques ilegais de Haftar contra a capital Trípoli. O Secretário-Geral da ONU Antonio Guterres reconheceu que a escalada na Líbia atingiu um ponto crítico e que nada foi feito em Berlim, salvo um compromisso verbal para dar fim à escalada.
É difícil não concluir que a conferência foi inútil em termos de segurança, estabilidade e mesmo qualquer intenção de dar fim ao conflito. “Os lados líbios deram um pequeno passo adiante desde o encontro em Moscou [realizado na semana anterior]”, declarou Sergei Lavrov, Ministro de Relações Exteriores da Rússia. “Está claro que não é possível ainda estabelecer um diálogo sério e estável entre eles [o governo reconhecido pela ONU e Haftar]. As diferenças na abordagem são grandes demais.”
Segundo a agência de notícias Bloomberg: “Acesso ao petróleo líbio é um incentivo majoritário para Putin”. A Rússia até então enviou cerca de 2.500 mercenários para combater ao lado das tropas leais a Haftar.
Conforme relatos, o Secretário de Estado dos Estados Unidos Mike Pompeo afirmou ter esperanças de que as instalações de petróleo na Líbia – sitiadas por facções pró-Haftar – sejam reabertas como resultado da conferência em Berlim. “Os Estados Unidos possuem um interesse de contraterrorismo [na Líbia]”, reiterou Pompeo, segundo declaração emitida pelo Departamento de Estado americano. “Há importantes oportunidades energéticas na Líbia … Uma das coisas que mencionei é que espero que o fechamento conduzido recentemente – que suspendeu algumas das exportações de petróleo cru – seja revogado como resultado também de nossas conversas.”
A ONU também parece aflita com a questão do petróleo líbio. “Estou bastante preocupado”, esclareceu Guterres, “com o fato de que diversos portos, pelos quais o petróleo é exportado, foram bloqueados e que um campo de petróleo bastante importante também suspendeu suas operações hoje.” Acrescentou Guterres: “Obviamente, cremos que uma solução mais abrangente seria efetivamente reformar as estruturas da Companhia de Petróleo Nacional, reconsiderar o modo como as coisas são feitas e esperamos que seja possível restabelecer a normalidade, mas é evidente que dependerá de outros fatores.”
Na declaração final da conferência, lê-se: “Pedimos a todas as partes interessadas que redobrem seus esforços para preservar a suspensão das hostilidades, a desescalada e um cessar-fogo permanente. Pedimos pelo fim de todos os movimentos militares realizados pelas partes em conflito, ou em direto apoio a elas, em todo o território da Líbia, a começar com o início do processo de cessar-fogo.”
Há evidências suficientes para crer que a conferência não pretendia ajudar o povo líbio ou seu governo legítimo, mas sim encontrar um modo de solucionar a crise do petróleo mediante interesses das potências globais, que possuem certos aliados na região representados por terceiros na guerra na Líbia. Haftar, que abandonou unilateralmente os acordos de Skhirat, meramente manteve os ataques a Trípoli; deste modo, enviou uma mensagem à conferência de Berlim de que qualquer cessar-fogo não será respeitado.
Caso os líderes internacionais estivessem de fato interessados em dar fim ao caos e ao conflito na Líbia, teriam decidido compor um grupo de trabalho para garantir a implementação do cessar-fogo “depreciado” ou mesmo reivindicado efetivamente que todos os países respeitem o embargo de armas estabelecido pela ONU. No mínimo do mínimo, deveriam ter formado uma força-tarefa, capaz de viajar à Líbia imediatamente, monitorar e dar fim às violações, estabilizar o país e realizar preparativos para avançar com o processo democrático nacional – como ocorreu em 2011, quando a OTAN interveio contra Gaddafi e ajudou a depor a ditadura na Líbia.
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