Ação midiática oportunista que antecede processos eleitorais nos Estados Unidos e em Israel – em que a crise interna é crescente. E em meio ao julgamento de impeachment de Trump no Senado americano e a essa possibilidade aberta no caso do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, por corrupção. O cenário ideal para o palco a desviar a atenção para essas questões e ainda ratificar efetivamente a limpeza étnica contínua e violação de direitos humanos na Palestina ocupada. Assim se pode definir o anúncio por Trump neste dia 28 de janeiro do chamado “acordo do século” – uma afronta aos palestinos e à inteligência de qualquer um que lute por direitos humanos. A qualquer um que, mesmo que minimamente, se indigne com a injustiça histórica cometida contra essa população.
Ao ensejo, a declaração de Netanyahu, um dos personagens chave nesse espetáculo, não deixa dúvidas sobre a “proposta” indecente. Ao classificar este momento como histórico, ele comparou o plano de Trump à do ex-presidente americano Harry Truman, em 1948, ao reconhecer o Estado de Israel – o qual foi criado em 15 de maio daquele ano mediante limpeza étnica deliberada dos palestinos (a Nakba, catástrofe). “Neste dia, você [Trump] se tornou o primeiro líder a reconhecer a soberania de Israel sobre Judeia e Samaria, vitais para nossa segurança e centrais para nossa herança”, afirmou o satisfeito Netanyahu, como reproduz reportagem na Folha de S. Paulo. “Judeia e Samaria” é como os sionistas denominam a Cisjordânia, Palestina ocupada em 1967. O uso de nomes hebreus de antigos reinos que teriam existido há milênios é uma representação religiosa para atrelar falsamente a região a lugares judeus.
No Brasil, tem servido para angariar o apoio de evangélicos. Na verdade, uma maquiagem utilizada para a colonização e limpeza étnica contínuas. De fato, Trump em seu “acordo do século” apresenta o que seria a “legitimação” da ocupação criminosa que se expande a passos largos. Uma busca por concluir a série de capítulos nas propostas do imperialismo e aliados à paz dos cemitérios – em outras palavras, sepultar a causa palestina.
Netanyahu informou que começará a “implantá-lo” nos próximos dias. Ele aplaudia efusivamente, ao lado de seu rival nas eleições para o Parlamento sionista, Benny Gantz, e na presença de embaixadores de Omã, Emirados Árabes Unidos e Bahrein. Nenhuma liderança palestina participou – todas vêm rechaçando a proposta. A Autoridade Palestina, alguns dias antes, declarou que tomaria medidas legais caso a proposta fosse apresentada pelos Estados Unidos. E vem ameaçando romper com os acordos de Oslo e se dissolver. Estes últimos foram assinados por Yasser Arafat, presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), e Yitzhak Rabin, primeiro-ministro de Israel, em 13 de setembro de 1993, em frente à Casa Branca, sob intermediação do então presidente americano Bill Clinton. A ação, também midiática e vendida ao mundo como “oportunidade histórica”, resultou em brutal expansão colonial sionista, facilitada pela cooperação de segurança com Israel por parte da então criada Autoridade Palestina, a qual se tornou de fato gerente da ocupação, sem autonomia e com dependência econômica integral de Israel.
O acordo do século
Velhos argumentos foram agora retomados, ao anúncio do malfadado “acordo do século”. “Oportunidade histórica” e “última chance para a paz” pululam entre as frases dos seus defensores. O acordo tem semelhanças com Oslo, como a questão da gradatividade em sua implantação. O tal “Estado palestino” – em talvez metade do território previsto na dita “solução de dois estados” – não passa de uma ficção e só seria criado em quatro anos. Abu Dis, um pequeno vilarejo que reúne refugiados palestinos deslocados internamente, em Jerusalém, seria possivelmente a capital desse imaginário futuro estado. Assim como Oslo, não resolve obviamente questões chave, como o direito inalienável de retorno dos milhões de refugiados palestinos as suas terras e o direito à água.
Mas consegue ser ainda pior. Sem a presença palestina e sob seu rechaço, está mais para uma versão contemporânea da Declaração Balfour. Nesta, apresentada em 2 de novembro de 1917, a Grã-Bretanha, então imperialismo do momento, declara-se favorável à constituição de um lar nacional judeu em terras palestinas. Dá, assim, seu aval e se coloca como aliada do projeto colonial sionista que culminou na Nakba, sua continuidade e aprofundamento mais de 100 anos depois.
Fruto de um processo que já dura três anos, o “acordo do século” traz entre seus pontos o reconhecimento de Jerusalém como capital indivisível de Israel, o não desmantelamento dos assentamentos ilegais e a anexação definitiva pelo Estado sionista do Vale do Jordão – fundamental para garantia de água à sobrevivência palestina. O retorno dos 5 milhões de refugiados palestinos na região, que vivem de forma precária em campos, é declaradamente rifado e sua futura realocação é incerta.
Do ponto de vista econômico, Trump promete 50 bilhões de dólares em ajuda ao “futuro Estado palestino” para assegurar um suposto desenvolvimento, reduzindo os níveis elevados de pobreza e desemprego resultantes da mesma ocupação ilegal que seu acordo avaliza. Uma tentativa de “comprar” a liderança palestina, que se estende também a negociações com os regimes árabes.
Palestina não está à venda
A resposta dos palestinos, contudo, é categórica e vem sendo repetida há tempos: “A Palestina não está à venda.” Logo ao anúncio, milhares de palestinos tomaram as ruas de Gaza e Cisjordânia em protesto contra a proposta indigna, que tem unificado as lideranças e comunidade palestina ao redor do mundo, assim como organizações solidárias – que reforçam o chamado por BDS (boicote, desinvestimento e sanções) a Israel. No twitter, entre os assuntos mais comentados no mundo, o chamado “Free Palestine” (Palestina livre).
A Liga Árabe, ciente de que o “acordo do século” tem potencial explosivo na região, convocou uma reunião de urgência para dia 1º de fevereiro. No mínimo, o pedido é de que Israel não anexe terras palestinas, caso da Jordânia, cujo Ministro de Assuntos Estrangeiros alertou para os perigos da medida unilateral. Na região, ainda, o Egito sugeriu que os palestinos analisem a proposta cuidadosamente. Irã e Turquia condenaram o acordo, assim como os opositores de Trump, os democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren. E a Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou seu compromisso em que se alcance a paz com base em suas resoluções – a dita “solução de dois estados”.
Entre as posições vergonhosas não poderia faltar Bolsonaro, que, da Índia, insistiu na intenção de transferir a Embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém – como fiel seguidor de Trump e Netanyahu. Nem bem voltou de viagem, segundo reportagem da Folha de S. Paulo, ele se reuniu com o embaixador israelense Yossi Shelley. Na sequência, o Itamaraty soltou nota endossando o “acordo do século”.
O momento é delicado para a causa palestina. Contudo, é também a oportunidade de fortalecer a solidariedade internacional efetiva, em especial a campanha de BDS, e unificar a resistência heroica e histórica palestina. É a oportunidade de romper com os desastrosos acordos de Oslo, que nunca trouxeram um dia de paz aos palestinos, pelo contrário. É também a oportunidade de cessar todas as ilusões. Parar de falar em paz – quando não passa da paz dos cemitérios – e começar a falar em justiça para a totalidade do povo palestino. Nessa direção, em seu twitter, o escritor israelense Miko Peled trouxe o contraponto ao plano de Trump: “Em resposta ao ‘acordo do século’, precisamos apresentar um plano alternativo claro que inclui: rejeição do sionismo e Israel, implementação do retorno dos refugiados palestinos e uma transição de #ApartheidIsrael [um estado de apartheid ] para uma Palestina livre e democrática.”
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