Políticos e especialistas em tempos de coronavírus

Por décadas, regimes políticos em todo o mundo demonstraram cada vez mais entusiasmo para fortalecer seus próprios países. Governos globais de fato armaram a si mesmos tanto quanto possível, com equipamentos militares, inteligência e vigilância, gastando quantias absurdas de dinheiro na conquista da suposta segurança interna, ao ponto em que políticos tornaram-se juízes supremos da vida diária. Sua autoridade legal em alguns países – ilegal, em outros – passou a controlar a distribuição da riqueza ao povo, a palavra final sobre a importância de projetos e prioridades específicas conforme sua própria visão. Tudo isso resultou no desequilíbrio da vida.

Afinal, quem está preparado para a pandemia global? Aquele que gastou bilhões de dólares para conter doenças ou aquele que gastou tamanha quantia no combate a inimigos externos? Ou mesmo aquele que, em alguns países, de fato gastou tudo isso para enfrentar opositores domésticos? Ou talvez aquele que assumiu medidas de segurança ambiental e valorizou medidas para prevenir doenças endêmicas? Veremos.

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Por que políticos ignoram recomendações de especialistas?

Em 30 de dezembro de 2019, Li Wenliang, oftalmologista chinês, alertou seus colegas médicos sobre o novo vírus, semelhante ao SARS, e os aconselhou a utilizar roupas de proteção. Após horas de conversa online com seus amigos, oficiais do Gabinete de Segurança Pública da China bateram à sua porta, alertando o médico contra a circulação de tais informações nas redes sociais. Os oficiais chineses forçaram Wenliang a assinar um documento no qual confirmou compreender a situação em que estava. Em 7 de fevereiro de 2020, Wenliang morreu de coronavírus.

Após a enorme propagação do vírus na China, o Presidente dos Estados Unidos Donald Trump demonstrou tamanho desdém à doença e seu rápido contágio, ao considerar seu país distante demais do surto epidêmico, cercado por oceanos e áreas geográficas que supostamente impediriam a chegada da doença a solos americanos. Conforme perguntas de jornalistas tornavam-se mais comuns sobre a questão do coronavírus, Trump chegou a alegar que não poderia manter-se político sem apertar as mãos de outros políticos, pois essa seria a maneira de preservar boas relações entre as pessoas. Sem aperto de mãos, as relações supostamente apodreciam.

O desdém de Trump em relação à pandemia não durou, pois o vírus chegou a seu país. Neste ponto, é preciso destacar sua excessiva egolatria, pois Trump só moveu-se após o vírus de fato aportar em solo americano. Trump não se preocupou em nada com os milhares de doentes na China, Europa e em todo o mundo. Preferiu lidar com a crise na mesma mentalidade das Guerras Mundiais. Entretanto, a globalização com base na comunicação e no contato direto entre as pessoas dissipou suas desculpas com enorme decepção.

O coronavírus afeta todo o mundo; será capaz de nos unir? – cartum [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Na Itália, diversos oficiais reiteraram a importância do fator tempo que tanto os surpreendeu, ao expressar arrependimento por não ter assumido medidas de segurança preventivas. Além disso, destacaram que poderiam ter contido a crise e evitado milhares de doentes e mortos caso tivessem levado a questão do coronavírus a sério logo no início.

Há vários países árabes e não-árabes que não souberam responder com a devida seriedade à ameaça do coronavírus, devido a uma noção de vaidade política que os impediu de ouvir especialistas. Ao registrar os primeiros casos da infecção, autoridades destes países negaram o problema e recrutaram um exército de mídia para ridicularizar a situação e desacreditar qualquer um que diga algo sobre o vírus. Alguns oficiais chegaram ao ponto de alegar que as pessoas possuíam uma imunidade inata capaz de derrotar o vírus, pois estavam acostumadas a beber água contaminada e comer porcarias.

Com base nestes detalhes, é possível dizer que lidamos hoje com políticos que refletem os papas da idade das trevas em sua tirania? Enfrentamos agora manifestações de despotismo disfarçadas de pretensão cível? Será possível que um político que busca vencer eleições democráticas por manipulação da mídia, propaganda eleitoral e alianças externas seja capaz de progredir em questões de interesse e direitos humanos e priorizá-las sobre suas próprias ambições?

Sei bem que tais questões demandam respostas extensas. Entretanto, ainda não as proponho. Será suficiente para intrigá-lo a pensar sobre este tópico de qualquer ângulo que queira. É por isso que permito-me concluir que a crise engatilhada pelo coronavírus é essencialmente causada por um sistema de valores que sustenta meramente políticas internas e relações internacionais, em detrimento da vida humana.

Enfrentamos uma crise ética em escala global, sustentada por políticas dos Estados Unidos por décadas e décadas. Quando Trump pediu no Twitter que “Deus proteja a América”, foi alvo de críticas por seu absoluto egoísmo; então, deletou o tuíte e voltou atrás: “Deus salve a todos”. Depois, voltou a demonstrar egolatria ao negociar com autoridades alemãs na busca por um tratamento para o coronavírus, ao requerer que os experimentos laboratoriais fossem transferidos aos Estados Unidos, para que seu povo fosse o primeiro a receber a vacina. No entanto, o laboratório ensinou ao presidente americano uma lição moral ao informá-lo que o tratamento será para todos, não apenas aos Estados Unidos.

Penso que desesperadamente precisamos construir um sistema de valores que seja fiel a nossa humanidade, em equilíbrio com os interesses humanos e capaz de superar crises geradas pelo atual crescimento da extrema-direita em todo o mundo. A crise do coronavírus pode também ser uma oportunidade para construir este sistema, à luz da vulnerabilidade dos mecanismos atuais, além da deterioração das condições econômicas em diversas potências. A história de fato nos demonstrou que muitas iniciativas marcantes descobriram seu caminho para o sucesso durante ou após enormes crises.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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