Desde o ataque aéreo dos Estados Unidos que matou o general iraniano Qasem Soleimani e Abu Mahdi Al-Muhandis – vice-comandante das Unidades de Mobilização Popular (UMP) –, em Bagdá, janeiro último, milícias xiitas com apoio do Irã em território iraquiano lançaram uma série de ataques contra forças americanas e aliados. Após a execução de Soleimani, o Irã declarou abertamente que seu objetivo estratégico é expulsar os Estados Unidos do Iraque e do Oriente Médio.
Antes do assassinato, o Irã executou apenas um único ataque contra forças americanas posicionadas no Iraque; após o assassinato, houve mais de uma dúzia de investidas contra tropas ou equipes lideradas pelas forças dos Estados Unidos no país, lançadas por grupos pró-iranianos que compõem a UMP. A organização militar foi criada em resposta à ascensão do Daesh (Estado Islâmico) em 2014 e foi incorporada às forças oficiais de segurança do Iraque, exercendo um papel fundamental diante da sociedade iraquiana.
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Há anos, autoridades de Bagdá enfrentam resistência para estabelecer pleno controle sobre as Unidades de Mobilização Popular – cujos líderes mantêm laços com o Irã. Porém, nos meses recentes, parece que Teerã efetivamente mudou suas táticas na região ao concentrar-se no estabelecimento de novos grupos armados para além da coordenação do UMP, a fim de conduzir operações militares contra bases e interesses americanos no Iraque. O ataque de foguete contra a base militar de Taji, ao norte de Bagdá, em 12 de março, que resultou na morte de três membros da coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos, sugere esta nova abordagem. O grupo Usbat Al-Thaireen (Liga dos Revolucionários), antes desconhecido, assumiu responsabilidade.
Para o professor Riccardo Redaelli da Universidade Católica del Sacro Cuore de Milão, não está tão claro se as novas ações iranianas representam uma nova tática ou apenas uma variação de táticas já estabelecidas, que por vezes contradizem umas às outras. Ao falar sobre “Teerã”, estamos lidando com uma realidade bastante complexa e diversos centros de poder, com perspectivas e interesses distintos, reitera o acadêmico italiano. Entretanto, segundo Redaelli: “Está claro que [as Guardas Revolucionárias do Irã] tiveram de se adaptar a uma nova situação, e a criação ou ‘ressignificação’ de novas milícias e grupos locais reflete a necessidade de evitar retaliação dos Estados Unidos.”
Não importa se tais grupos “ressignificados” são completamente novos ou apenas operam sob novos nomes, mas parece que não recaem oficialmente sob coordenação da UMP e, portanto, não possuem qualquer responsabilidade relativa à cooperação com autoridades iraquianas. Assim, evidentemente, não é possível responsabilizar a UMP ou as autoridades do Iraque pelas ações desses grupos.
Dado que tais grupos novos, como o Usbat Al-Thaireen, não estão na folha de pagamento do governo iraquiano e não recaem sob seu controle nominal, observou Kirsten Fontenrose, não há qualquer razão para que o governo local tolere sua violência contra forças dos Estados Unidos, em solo iraquiano a convite do governo. A diretora de segurança regional da divisão do Oriente Médio para o Conselho Atlântico argumenta que, caso o governo iraquiano demonstre indisposição em reagir a ataques conduzidos contra forças americanas por esses grupos, então a lei internacional permite que os Estados Unidos o façam. Caso o governo seja incapaz de agir contra tais grupos, então admite que já não possui o monopólio sobre o uso da força, o que – segundo definições – deslegitima seu próprio caráter de poder. Esta conjuntura também pode representar uma prova de fogo para qualquer governo iraquiano no exercício da soberania nacional.
Muitos iraquianos enxergam os ataques aéreos dos Estados Unidos como violação à soberania do Iraque. Além disso, ignorar o voto não-vinculativo de parlamentares iraquianos, que forneceu uma chance aos Estados Unidos de retirar-se pacificamente do país, e ameaças de bloquear dinheiro de petróleo do Iraque depositados no Banco de Reserva Federal de Nova Iorque certamente não contribuem para a tão almejada soberania iraquiana.
Estabelecer controle pleno sobre os grupos armados do UMP representaria, portanto, um grande desafio nas presentes circunstâncias, à medida que o país enfrenta simultaneamente descontentamento interno, emergência de saúde e vertiginoso declínio econômico. O mesmo vale para o Irã, no entanto, mas não houve de fato qualquer redução significativa no uso iraniano de grupos que agem por procuração no território do Iraque, mesmo diante das dificuldades domésticas na República Islâmica, decorrentes da crise de coronavírus. De fato, segundo Fontenrose, vimos na prática um pequeno aumento na violência de milícias patrocinadas pelo Irã tanto no Iraque quanto no Iêmen, desde o início da pandemia. “Isso confirma que o Irã mantém um orçamento sacro e separado para operações das Forças al-Quds [unidade de elite da Guarda Revolucionária], sequer tocado para ajudar a aliviar as pressões em curso sobre o sistema de saúde [do Irã]”, esclareceu Fontenrose.
Apesar disso, a atual abordagem olho por olho é insustentável a longo prazo, pois pode pavimentar o caminho para uma guerra direta. Sobretudo, é evidente que ataques calculados com o propósito de reduzir as capacidades das milícias filiadas ao Irã não as detêm. Deste modo, alguns observadores acreditam que a saída americana do Iraque é agora inevitável, visto que não faz quase nenhum sentido para os Estados Unidos continuarem a investir recursos em um “estado falido”. A saída, contudo, seria vista como fatal para o Estados Unidos e uma grande vitória para o Irã, cuja “nova tática” pode render resultados, embora não seja claro no momento como o Irã poderia sequer contribuir para reconstruir o Iraque.
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Na opinião de Fontenrose, caso os Estados Unidos saiam do Iraque, então o Irã e seus aliados herdarão um estado não-funcional com um sistema de governo falido, uma economia devastada, uma infraestrutura em ruínas e uma população descontente. Ela acredita que o Irã poderá se satisfazer com isso: o fracasso institucional permite que Teerã manipule os recursos iraquianos com maior facilidade. Entretanto, a comunidade internacional e os próprios iraquianos terão expectativas de que o Irã preencha o vazio deixado por Estados Unidos e Europa. O governo iraniano terá de provar que pode levar estabilidade, segurança e projetos de reconstrução ao país vizinho. “Infelizmente, não pode”, conclui Fontenrose.
Idem para os Estados Unido, cujos dezoito anos de ocupação fracassaram em entregar resultados. Na perspectiva de Redaelli, a atual administração americana não possui qualquer tipo de estratégia de longo prazo para o Oriente Médio; adotou, portanto, uma postura fundamentalmente reativa, por vezes reativa demais. A atual gestão dos Estados Unidos é a mais obsessivamente anti-iraniana em décadas; logo, o professor de Milão duvida seriamente da possibilidade de qualquer recuo no Iraque neste momento.
Ao invés das retaliações constantes em curso, Fontenrose reflete se Irã e Estados Unidos são capazes de dar uma breve folga ao Iraque e permitir espaço mútuo para que ambos os países exerçam poder sobre o território iraquiano. Longe de “trabalhar juntos”, segundo ela, “isso significa atenuar as regras do jogo de soma-zero e, por exemplo, embarcar em uma estratégia de estabilidade coordenada por União Europeia e Conselho de Cooperação do Golfo, capaz de proibir (e monitorar) a chancela a grupos violentos e criar espaço para que agentes externos ajudem o Iraque a reestruturar seu governo e sua economia.”
É difícil acreditar que tal cenário seja possível sob a atual liderança do Irã ou dos Estados Unidos. Segundo Redaelli, o assassinato de Soleimani pode ter reduzido o poder de dissuasão dos Estados Unidos sobre o Iraque, mas dificilmente resultará na anuência iraniana de um acordo de “compartilhamento de poderes” no território iraquiano. Redaelli também demonstra grande ceticismo sobre a eficiência de qualquer abordagem do Conselho de Cooperação do Golfo – em particular, Arábia Saudita –, em relação ao Iraque, à medida que seus membros são tradicionalmente fracos no exercício de qualquer poder de dissuasão. Contudo, os atuais acontecimentos no Iraque são – conforme seu ponto de vista – a epítome da teoria de hiperextensão geopolítica: o Irã mal pode manter sua posição regional e há dúvidas bastante verossímeis de que tentará qualquer novo ato de expansão regional.
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