A relação da mídia com as políticas de estado e seus impactos sobre as populações mais vulneráveis são um assunto de atenção do Monitor do Oriente Médio, especialmente onde há coincidência entre as condições vividas pela sociedade brasileira e as da sociedade palestina sob ocupação.
Quando a barbaridade de um crime policial revolta a população a ponto de conseguir penetrar a mídia, então a sociedade toma conhecimento da morte do menino Guilherme Silva Guedes, por estar exposto à proximidade da polícia no Brasil, ou da morte do jovem autista Eyad Hallaq, na Palestina, pelo mesmo motivo. Mas o fato dessas mortes de inocentes por agentes da lei serem cotidianas tem o devido lugar nos meios de comunicação?
No Brasil, no dia 12 de junho, o governo federal excluiu do relatório anual dos direitos humanos a contabilidade dos casos de violência policial referente ao ano de 2019, o primeiro ano da gestão Bolsonaro. A denúncia foi feita pela Folha de S. Paulo.
Um levantamento independente, divulgado pelo Monitor da Violência, iniciativa do Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o site G1, do grupo Globo, revela que o país teve ao menos 5.804 mortes causadas por policiais na ativa no ano passado e 5.716 em 2018.
É no mínimo, um fato gritante que o aumento de 1,5% do número de pessoas mortas pela polícia contraste com a diminuição de 19% em mortes violentas no país apurados no mesmo período pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A fria estatística da letalidade policial, que ofende um país em luta contra a violência, cobra da imprensa e estudiosos sociais um mergulho na busca da explicação das causas, responsabilidades e a exposição das feridas profundas abertas na sociedade. É nessa exposição do Brasil profundo, que se debate contra uma normalidade repressiva, que a narrativa se perde. A estatística sinaliza e ao mesmo tempo encobre a realidade.
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A queixa da população palestina em relação à mídia internacional não é diferente. Confinada a um cotidiano de vigilância, agressão, mortes violentas e prisões administrativas, sofre com o retrato distorcido de sua luta contra a ocupação israelense. “Contem ao mundo o que viram aqui”, foi o pedido mais recorrente que os integrantes da Missão Gaza, que partiram do Fórum Social Mundial que se realizada na Tunísia em 2015 para a Palestina, ouviram em todas as visitas que fizeram.
Esse contar ao mundo encontra a barreira dos poderosos meios de comunicação e seus focos de atenção. Em abril deste ano, um estudo divulgado nos Estados Unidos mostra que a cobertura tendenciosa – com seu viés anti palestino – é histórica no país. O estudo do 416 Labs encerrado no ano passado abrangeu um período exaustivo de 50 anos, a partir da Guerra dos Seis Dias de junho de 1967 e o início da ocupação de Jerusalém Oriental, da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. A distorção na mídia é naturalizada porque faz eco ao discurso do Estado. O estudo cita a prioridade dos legisladores para discutir propostas de criminalização da campanha de Boicote, Sanção e Desinvestimento contra Israel, com pouca ou nenhuma atenção à ocupação ilegal e violenta que motiva a campanha e que é, na verdade, impulsionada pela política norte-americana.
Para discutir essa cobertura, o Monitor do Oriente Médio organizou, no último dia 15 de junho, um debate online com especialistas em diferentes áreas, trazendo referências alguns diferentes lugares e perspectivas no Brasil.
O tema em debate foi “a narrativa de mídia frente à violência de estado” no Brasil e na Palestina ocupada. Para debater foram convidados o cientista político Bruno Beakline, do Rio Grande do Sul, que estuda temas do Oriente Médio e discute questões de segurança pública em seus artigos; a jornalista comunitária Gizele Martins, da Favela da Maré, no Rio de Janeiro, autora do livro “Militarização e censura – A luta por liberdade de expressão na Favela da Maré” e o jornalista e pesquisador Jeferson Choma, que se dedica a estudos sobre os povos da floresta amazônica.
Narrativas coincidentes para processos semelhantes são encontradas ao longo da história, por exemplo para justificar intervenções violentas nas terras e vidas de outras populações.
Jeferson e Bruno lembraram o quanto o regime militar brasileiro inspirou-se no discurso sionista que tratava a Palestina como uma terra sem povo para um povo sem terra.
Para justificar o avanço de seus projetos sobre a Amazônia, o governo brasileiro dizia tratar-se de uma terra sem homens para homens sem terra. “Ambos os territórios – Amazônia e Palestina – sofreram um processo intensivo de colonização que resultou em políticas de quase extermínio da população Na Amazônia, resultou na morte de mais de 8 mil índios, segundo a Comissão Nacional da Verdade no Brasil”, conta Jeferson.
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O debate mostrou algo bastante significativo: De certa forma, para a realidade violentada, não há narrativas. Tampouco para suas causas, consequências e reais perpetradores. O que existem são narrativas que corroboram essa invisibilidade.
Aqui ou na Palestina, as populações originais são vistas como um constante obstáculo ao progresso e ao desenvolvimento, o que as coloca na categoria de ameaças. Jeferson Choma observa que essa visão dos tempos coloniais permanece até hoje, repete-se em todos os governos, e agora de forma escancarada. O atual governo fomenta a invasão das terras e de várias unidades de conservação.
A destruição é alarmante e ao mesmo tempo desconhecida. O que se sabe, mostrou o debate, é que o desmatamento que só em 2019 teve uma alta de 34% e nos três primeiros meses de 2020 aumentou 55% em relação ao mesmo período do ano passado, caminha para um desastre ambiental inimaginável. Em extensão, a previsão do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia é de que ser mais de 4.500 quilômetros sejam desmatados só este ano. Mas o que não se sabe?
Jeferson fala dos indígenas Mundurucus, Yanomamis, os isolados do Vale do Javari, e dos demais povos da floresta. Eles vão sendo empurrados pelo desmatamento, ameaçados por garimpeiros ilegais, alcançados pelo coronavírus. Essas realidades são vistas apenas de fora, e no entanto, o risco, como alerta o jornalista, é de que uma Amazônia desmatada abra a caixa de pandora dos vírus e ameaças biológicas das quais hoje a floresta protege o resto do mundo.
O silêncio encobre laboratórios da violência que ameaçam o futuro. Os relatos da jornalista Gizele Martins, no livro “Militarização e censura – A luta por liberdade de expressão na Favela da Maré”, mostra uma realidade recente, por ocasião da copa do mundo de 2014 – quando até as mídias comunitárias, debates e atividades culturais foram alvo da repressão do Estado.
Com anos de luta pela democratização da comunicação, a autora buscou com seu livro cruzar a fronteira da mídia para expor a paisagem censurada a organismos internacionais. “É diferente você ser jornalista de fora da favela para narrar o que está dentro”, explica ela, que foi em busca de reunir relatos e registros de outras vozes e mídias da comunidade. Uma realidade não tratada com atenção pela grande mídia naquele momento parece hoje contaminar toda cena brasileira em que o governo federal discrimina jornalistas, censura criações publicitárias, processa chargista e sonega informações aos principais veículos imprensa.
Os dados trazidos por Bruno Beakline, sobre uma polícia desestruturada, que submete seus agentes a condições de quase subemprego, empurrando-os para a prestação de serviços privados de segurança, deve estar entre as causas da crescente brutalidade policial contra vulneráveis. Não é a única, como ele alerta. E a aceitação da mídia para o discurso do agressor está entre as principais razões da impunidade.
Mesclar o genocídio da juventude negra brasileira como a paisagem do combate à criminalidade naturaliza a indiferença e consagra o racismo como política de estado e norma social.
Participar e contribuir para a confusão entre antissionismo, movimento crítico ao estado de Israel, e antissemitismo, que tem na mira o povo judeu, é talvez a mais grave colaboração dos governos e discursos oficiais para que a violência continue avançando a passos largos sobre o povo palestino.
Essa violência prossegue abrindo caminho para a política. No dia 1º de Julho, o governo de Israel, com apoio dos EUA, deve partir para a anexação de grandes fatias da Cisjordânia e do Vale do Jordão, tomando pra si quase toda Palestina. Casas já estão sendo demolidas, plantações de oliveiras destruídas, poços de água soterrados. Os palestinos estão sob a mira dos governos que não se importam em comprar e financiar as armas apontadas por Israel, entre eles o Brasil. E já nem contam com o olhar impotente das organizações da comunidade internacional, que dependem do dinheiro de grandes aliados da ocupação para se manter.
O laboratório da ocupação renderá novas políticas ao mundo e não se trata de algo distante. No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro já se inspira nas políticas e interesses de Israel. Talvez fosse um bom exercício da mídia expor o que essas políticas significam para as vidas humanas envolvidas. Um pouco de empatia também ajudaria o mundo a se proteger da própria invisibilidade.
As histórias do menino Guilherme Silva Guedes, e do jovem autista Eyad Hallaq, assim como do americano negro George Floyd conseguiram, pela brutalidade exposta, chegar até a mídia e nos sensibilizar. Mas elas não são a exceção a uma regra invisível e inexplorada pela cobertura internacional.
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