Passaram-se dezessete anos desde o início dos bombardeios dos Estados Unidos sobre Bagdá. A invasão da coalizão americana a partir de 2003 causou mais de 150.000 mortos, custou trilhões de dólares e possui repercussões graves até hoje por toda a região, em sua política internacional e a milhares de famílias.
A invasão foi um crime de agressão segundo a lei internacional e foi repudiada por indivíduos, entidades e países em todo o mundo. Trinta milhões de pessoas tomaram as ruas em sessenta países, em 15 de fevereiro de 2003, para expressar oposição à guerra e ao iminente horror vivenciado no século XXI. O Iraque, reiteraram, não representava qualquer perigo aos Estados Unidos. O governo iraquiano não tinha meios tampouco intenção de entrar em conflito com os americanos; sequer emitiu qualquer ameaça.
“[O Presidente dos Estados Unidos] George W. Bush afirmou que, caso entrasse no Iraque, os iraquianos o receberiam com flores; isso levou a uma série de estereótipos, graças às agências de segurança e à imprensa hegemônica sionista, americana e árabe, ao nos representar como traidores”, relatou Muntadhar Al-Zaidi. O jornalista ficou famoso em 2008, quando atirou seus sapatos contra Bush durante coletiva de imprensa. “O povo do Iraque resistiu à ocupação desde o primeiro dia. Era e ainda é seu direito legítimo resistir à ocupação”.
A serviço da emissora Al-Baghdadia TV, Al-Zaidi conquistou as manchetes após o incidente, ocorrido na residência oficial do então primeiro-ministro Nouri Al-Maliki. “Este é um beijo de adeus do povo iraquiano, cachorro!”, gritou em árabe o jornalista, ao atirar o sapato. “Isso é pelas viúvas, órfãos e todos os mortos no Iraque”.
O vídeo do incidente é icônico. Al-Zaidi foi condenado por agredir um líder estrangeiro e então preso, ainda alheio ao impacto de seu protesto. Foi mantido em confinamento solitário em uma cela minúscula por três meses.
Al-Zaidi, agora com 39 anos, serviu a nove meses de prisão no total. Alega ter sido torturado por oficiais de segurança iraquianos. Foi solto antes do previsto devido a bom comportamento. A solitária o assombra até hoje. O jornalista relata que habitualmente estica os braços para mensurar o tamanho do cômodo e compará-lo à sua antiga cela.
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“Quando reformei meu banheiro, costumava lembrar de minha cela. Estendia meus braços e descobria que, na verdade, era maior do que a minha cela, pois eu mal conseguia esticar os braços quando estava preso. Eu mal cabia ali”, declarou.
Em editorial para o jornal britânico The Guardian, posteriormente, Al-Zaidi explicou que, como jornalista, tinha de reportar diariamente as tragédias no Iraque. Entrava em casas destruídas e ouvia o choro dos órfãos; então prometeu buscar vingança.
“Prometi que caso encontrasse aquele bandido [Bush], teria de mostrá-lo seu valor com meu sapato, porque mentiu ao dizer que o povo iraquiano o receberia com flores. Infelizmente, o mundo acreditou nele e fomos acometidos por mentiras, com as quais nada tínhamos a ver.”
Após ser libertado da prisão, Al-Zaidi largou o jornalismo e mudou-se para Genebra e então Beirute, onde fundou uma organização humanitária para ajudar as vítimas da guerra no Iraque. A intenção é dar apoio para construir orfanatos e centros médicos, ao oferecer tratamento gratuito às vítimas da guerra.
Ao invés de simplesmente ser espectador dos casos de tortura, o ex-jornalista agora considera a si mesmo como sobrevivente. Para aqueles como ele, insiste, há assuntos inacabados.
Hoje, Al-Zaidi está de volta a Bagdá e trabalha como político para denunciar a corrupção que aflige o país. Sua única motivação para entrar na política é conquistar justiça. “Não desejo ver ninguém oprimido e deixar de ajudá-lo. Quero ajudar a todos que puder. Este é meu objetivo de vida. Meu povo sofreu o bastante.”
A hipocrisia das potências ocidentais sobre a região e o mundo pode ser dimensionada por sua relação com o ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, denuncia. Quando Saddam invadiu o país em 1980, era tratado como homem do Ocidente. Centenas de milhares de pessoas foram mortas nos oito anos de guerra. Em 2003, o ditador já não tinha mais serventia às potências estrangeiras.
Além disso, questiona Al-Zaidi, alguém já foi preso pelos abusos sobre cidadãos iraquianos e outros detidos na prisão de Abu Ghraib? As imagens desumanas que surgiram da prisão mostram iraquianos nus presos a coleiras, como se fossem animais; amontoados uns sobre os outros; submetidos a tortura sexual e por afogamento. Soldados americanos sorriem em muitas destas imagens, uma expressão obscena que simboliza uma espécie de crueldade impensável, que definiu de fato toda uma geração de iraquianos. Tais imagens retratam apenas os campos de detenção dos quais temos conhecimento, que eventualmente vazaram ao público.
“É nosso anseio e nosso sonho que a intervenção estrangeira nos interesses iraquianos seja erradicada”, declarou Al-Zaidi. “Será difícil, mas não impossível. Permaneceremos nas ruas até conseguirmos o que queremos. É claro, nossa maior reivindicação é um Iraque independente, livre, sem qualquer intervenção estrangeira ou corrupção, com um governo justo e capaz de cuidar de seu povo. Recuperamos apenas 10% dos efeitos da ocupação; é apenas a ponta do iceberg.”
Muitos dos homens que governam o Iraque hoje são ex-exilados que correram a Bagdá em 2003, nos calcanhares das forças da invasão anglo-americana. Jovens iraquianos tomaram as ruas para reivindicar o fim do regime político corrupto do Iraque pós-2003, além da influência trágica do Irã e dos Estados Unidos sobre a política iraquiana.
Mohammed Tawfiq Allawi, ex-exilado e primo do ex-primeiro-ministro interino Ayad Allawi, indicado pelos Estados Unidos, foi indicado premiê em fevereiro, após o chefe de governo em exercício Adil Abdul-Mahdi anunciar que abdicaria do poder em novembro último, diante dos protestos populares no Iraque. Mais de 600 manifestantes foram mortos até então. Allawi retirou sua nomeação dentro de semanas, após a Assembleia Nacional não chegar a consenso algum sobre seu gabinete. Abdul-Mahdi eventualmente renunciou, em maio.
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“Minhas objeções e reservas não são às pessoas eleitas”, enfatizou Al-Zaidi. “Mas sim àqueles que indicam os mesmos partidos corruptos contra os quais tanto protestamos. Não sacrificamos quase 700 pessoas para que os homens no poder substituíssem Adil Abdul-Mahdi por Mustafa Al-Khadimi ou mesmo Muntadhar Al-Zaidi ou qualquer outro! Não! Protestamos contra o círculo corrupto que governa o Iraque há 17 anos e não chegamos a nada, sequer um simples projeto.”
Segundo Al-Zaidi, a solidariedade em nome da justiça deve ser global. De fato, acredita que sua relativa fama implica em responsabilidade para lutar por justiça. O jornalista usa suas redes sociais, onde possui mais de 56.000 seguidores, para demonstrar apoio ao movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e aos manifestantes que denunciam hoje a brutalidade policial, após o assassinato de George Floyd, no último mês, em Minneapolis, Estados Unidos.
“Estamos ao lado daqueles que protestam pois também são oprimidos”, declarou. “Nós, no Iraque, sofremos com o poder e a autoridade americana desde a ocupação do Exército dos Estados Unidos, em 2003; então, todo nosso apoio, empatia e solidariedade está com aqueles nas ruas, na América e no resto do mundo.”
Muntadhar Al-Zaidi quer que as pessoas se lembrem dele apenas por não ter se silenciado diante da opressão, frente à ocupação de seu país e ao assassinato de seu povo. “Espero que as pessoas continuem a lutar contra a injustiça. Caso pudesse voltar no tempo, faria de novo: atiraria meus sapatos contra George W. Bush. Meu desejo é um dia, junto de todos os outros que ocuparam o Iraque, é vê-lo na prisão.”
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