O plano de anexação da Cisjordânia, anunciado para 1º de julho, começará a colocar em prática o acordo do século para o Oriente Médio, divulgado em janeiro deste ano pelo presidente dos Estados Unidos, embora sem a participação ou concordância dos palestinos..
Brasil, Uruguai, Paraguai, Honduras, Colômbia, Bolívia – não foram poucos os governos da América Latina que demonstraram boa aceitação ao plano de Donald Trump, que alguns enalteceram, chamando de plano de paz e que agora mostra suas primeiras consequências. Contra o acordo falaram Venezuela e Cuba, dois países sob sanções dos Estados Unidos.
A indiferença cúmplice de vários governos com a proximidade da anexação tornou-se menos exposta em meio às preocupações do continente com o drama causado pelo coronavírus. Já passa dos dois milhões o total oficial de infectados, e mais de 100 mil mortes, a maior parte no Brasil. E é assustador pensar nas subnotificações. Mas apesar disso, a amizade do povo latino americano com os palestinos busca meios de atravessar os muros das conivências, bater nas portas das instituições e pressionar os estados e a comunidade internacional a agir.
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Desde a semana passada, circula no Brasil uma carta entre lideranças e figuras públicas convidadas a participar de um chamado do Sul Global à solidariedade com a Palestina e a sanções contra Israel. A iniciativa coordenada pelo movimento BDS para a América Latina se soma a uma campanha iniciada na África e Ásia a ser lançada conjunta e publicamente no dia 4 de julho. A data foi definida internacionalmente pela coalizão BDS sul-africana, que traz na memória a luta contra o apartheid em seu país, e que propõe uma rejeição intercontinental à anexação. A campanha visa expor Israel como o estado colonial promotor do apartheid da vez, um país ocupante que viola o direito internacional e os direitos humanos sistematicamente.
Triste papel de um antigo amigo
Na última sexta-feira, o voto brasileiro contra uma resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU que trata da investigação e responsabilização por crimes cometidos na ocupação da Palestina repercutiu na imprensa brasileira por diferenciar-se de posições históricas do país na ONU. O Brasil já foi mais prudente e solidário com o povo palestino. Mas o voto de agora não chegou a surpreender.
A política internacional do curto tempo de governo de Jair Bolsonaro já coleciona alguns constrangimentos, sendo um das mais recentes a declaração do ministro das Relações Anteriores, Ernesto Araújo, de que a pandemia teria algo a ver com um plano comunista para tomar a Organização Mundial de Saúde. ‘Não permitamos que a saúde seja mais uma vítima a ser sequestrada por essa ideologia e pervertida para servir a objetivos totalitários’ , conclamou ele em uma reunião do Conselho de Segurança da ONU que era voltada a celebrar os 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial
Com os canais diplomáticos obstruídos dessa maneira, a solidariedade entre os povos acaba passando longe do Itamaraty e procurando seus próprios caminhos.
Diplomacia limitada
Neste momento, em meio a toda tragédia da pandemia, e apesar da resistência constante à ocupação, não há barreira para os blocos de concreto que já vão fechando as passagens na Cisjordânia e Vale do Jordão aos palestinos.
A recente reunião do Conselho de Direitos Humanos foi, pelo menos, uma oportunidade diplomática de enviar uma mensagem clara contra mais uma catástrofe programada para cair sobre o povo palestino.
“Os próximos dez dias serão decisivos para enfrentar a anexação”, disse o porta-voz da Autoridade Nacional Palestina, Nabil Abu Rudeina, sobre o período de incertezas que vem pela frente. A anexação irá consolidar uma situação de apartheid, como definiu o ministro de Relações Exteriores da Jordânia, Ayman al-Safadi.
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O Brasil esteve, no mínimo, indiferente, abstendo-se de votar uma resolução apoiada por Argentina, Chile, Peru e Uruguai sobre os assentamentos ilegais.
A mesma resolução levou anteriormente à criação de uma lista de empresas que operam nos territórios palestinos ocupados além das linhas definidas em 1967. Significa que essas empresas continuam passíveis de serem penalizadas de acordo com o direito internacional.
Outro voto brasileiro foi contra uma resolução que rejeita a soberania israelense sobre as Colinas sírias de Golã. Por outro lado, votou a favor da autodeterminação do povo palestino e proteção aos direitos humanos. Como num jogo de azar.
O conjunto das resoluções forma um pacote duro contra Israel, mas cujo efeito ainda carece de medidas concretas que a ONU não conseguiu até hoje implementar.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, instou Israel nesta terça-feira (23) “a renunciar a seus planos de anexação”. Para Guterres, a medida seria devastadora” e destruiria a perspectiva de um Estado Palestino viável”. Também seria “uma violação muito grave do direito internacional”
Palestinos no Chile, pressão em comunidade.
Resistir à ocupação é uma preocupação para os palestinos na Diáspora. No Chile, onde se encontra a maior comunidade palestina da América Latina, a pressão já chegou com mais força ao parlamento e, de lá, ao governo.
O presidente do Grupo Interparlamentar Palestino Chileno, deputado Sérgio Gahona, defende que o governo reveja os acordos assinados entre o Chile e Israel e bloqueie a compra de produtos de assentamentos. “Já não basta declarar intenções se não forem acompanhadas de medidas concretas”, afirma.
Uma carta assinada por 66 parlamentares pressionou o chanceler Teodoro Ribera a reconhecer que “a anexação como a descrita terá consequências graves e imprevisíveis para a obtenção de uma solução justa e pacífica”. Não é possível saber qual outra anexação seria menos danosa, na visão do ministro.
A comunidade palestina no Chile tem laços muito fortes com a Cisjordânia. “Existem centenas de cidadãos chilenos que também serão afetados pela eventual anexação, já que ela contempla o confisco de terras em Cremisan e Al Makhrour, ambos em Beit Jala, de onde vem o maior número de chilenos de origem palestina” , diz uma carta ao governo.
Parte das pressões sobre o governo partiu também mas de quase 200 judeus do Chile, Argentina, Colômbia e Brasil, da organizações Agrupación Judía Diana Arón (AJDA), do Chile e também assinada pela Federación de Entidades Culturales Judías de la Argentina (ICUF). O abaixo-assinado afirma o rechaço coletivo à anexação, considerada a “consolidação de uma política sistemática de colonização e ocupação que historicamente ameaçou as reivindicações do povo palestino.” Os signatários temem conseqüências por toda a região, com mais violência, morte e sofrimento e distanciamento de um possível acordo de paz entre os dois povos.
O direito de protestar sob ataque
Na Argentina, protestos têm sido chamados de modo conjunto pelo comitê argentino de solidariedade, organizações de direitos humanos, indígenas, movimentos antifascistas e organizações solidárias, para contestar a decisão do Ministro das Relações Exteriores. de adotar a definição do “antissemitismo”, aprovado pela Aliança Internacional para Recordação do Holocausto (IHRA).
As organizações explicam que a definição gera distorções e permite criminalizar inclusive quem critica as políticas do Estado de Israel, promovendo uma espécie de “chantagem retórica”. Esse instrumento, explicam, pode servir para para silenciar “o repúdio enérgico que a anexação da Cisjordânia merece”.
Em muitos países, essa definição foi adotada. Em outros, a campanha BDS foi criminalizada. Atividades, palestras e empregos já foram cancelados no mundo por pressões sionistas, com base nessas decisões. Quando se trata da relação Israel e Palestina, os movimentos sociais que protestam contra a ocupação e anexação se deparam com um caminho acidentado. Descobrem que precisam lutar também por seu direito de protestar e manifestar solidariedade para não incorrer em alguma cláusula estranha de governo que lhe retire essa liberdade.
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