Um dia de reggae e de apartheid

Chegada de Nelson e Winnie Mandela à Jamaica, em 1991

No 1º de Julho celebramos o Dia Internacional do Reggae. A data foi lembrada por algumas mídias brasileiras, assim como o fato que a transformou em dia de festejar Bob Marley, Jimmy Cliff e Peter Tosh. O poder de suas canções inspirou jovens contra o apartheid na África do Sul.

A origem da celebração é atribuída à visita do casal Winnie e Nelson Mandela à Jamaica, em julho de 1991. Na ocasião, Winnie discursou,explicando como o ritmo jamaicano fora importante para as pessoas lutarem em seu país. Três anos depois, um festival consagrou a efeméride mundialmente. Dia de reggae é dia de banir o apartheid da história.

A mídia brasileira, a começar pela rede Globo, mencionou o episódio. De fato há uma empatia do mundo com o povo que enfrentou, com Nelson e Winnie Mandela, a supremacia branca no país africano colonizado pelos britânicos. Apartheid, como a festa do reggae nos lembra, deveria ser seguido da frase “nunca mais!”

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Bob Marley e uma frase de sua canção War.

Mas foi Bob Marley quem cantou que, enquanto a filosofia que mantém uma raça superior e outra Inferior não for final e permanentemente desacreditada e abandonada, tudo será guerra.

Este 1º de Julho de 2020 também foi a data marcada pelo governo israelense para anexar, oficialmente, mais 30% das terras da Cisjordânia. A decisão foi por ora postergada devido às pressões internacionais e ao recuo momentâneo no apoio dos Estados Unidos. Só ela já seria uma flagrante violação do Direito e tratados internacionais. Mas o que se passa na relação entre Israel e Palestina é um apartheid há muito instalado e consolidado.

Lembro de uma situação, há alguns anos, dentro de um ônibus que seguia de Ramala para Jerusalém. Viajando, estava um grupo em missão de solidariedade com o povo de Gaza, bombardeada e atacada no ano anterior. No meio do caminho o veículo parou e todos começaram a descer. Do lado de fora, nos vimos diante do acesso a um corredor de barras de ferro que conduzia a uma enorme catraca, onde os passageiros desembarcados aguardavam em fila. Lentamente eram chamados, um a um, até um dos guichês de controle, para apresentar documentos, responder perguntas para então sair por outro corredor do outro lado. Passamos pelo procedimento e, na saída, não havia mais um ônibus à espera. Era preciso esperar e pagar por outra condução.

Não foi a única vez. Na segunda viagem, quando o ônibus parou, nos levantamos para sair e perguntamos alguma coisa a um policial que controlava a saída. Ao perceber nosso sotaque estrangeiro, mandou que voltássemos aos assentos. Antes, se dirigiu a um senhor de cabelos brancos que continuava sentado, pediram documentos e forçaram-no a descer. Ele era palestino. Então, o ônibus partiu deixando os passageiros controlados para trás e seguimos a Jerusalém.

Nos dias em que ficamos na Cisjordânia, era assim que íamos descobrindo a segregação, em situações cotidianas. Entendemos que todo palestino que circula em sua terra precisa passar pelos sucessivos postos de controle. Seus carros têm placas distintas. Sua estradas são outras. Até suas caixas d’água tem outra cor.

Demolição de residência no bairro de Wadi al-Hummus, na região de Sur Baher. Jerusalém Oriental em 22 de julho de 2019. [Issam Rimawi / Agência Anadolu]

Nos últimos meses, muitos perderam suas casas por habitarem áreas visadas pela ocupação israelense. E os despejos, quando registrados por alguma foto furtiva, são cenas de horror. Famílias são chamadas a derrubar as próprias paredes ou a pagar fortunas para que o estado israelense o faça. E as demolições não pararam durante a pandemia.

Algo de hipocrisia faz a sociedade celebrar as lutas do passado sem reconhecê-las no presente. Mas elas estão em curso, carregando aprendizados das experiências vividas, abrindo, como convidava Jimmy Cliff, “uma nova trilha a partir de um conto antigo”, cantando “uma nova música que ainda se desenrola, não contada”.

Inspirada no movimento de Boicote,Sanções e Desinvestimento (BDS) que mobilizou a solidariedade internacional contra o apartheid da África do Sul, uma ação coletiva foi iniciada no mesmo país africano e se estendeu pelo hemisfério Sul, com personalidades conhecidas, entre artistas e políticos, assinando um mesmo documento, defendendo sanções contra Israel e a reativação do Comitê Especial da ONU contra o Apartheid.

Chegada de Nelson e Winnie Mandela à Jamaica, em 1991

Dia 1º também foi o dia de início da edição 2020 do Julho Negro, um mês de atividades internacionais contra o racismo, a militarização e o apartheid. As lutas se entrelaçam, contra o genocídio da juventude negra, no Brasil, contra a limpeza étnica na Palestina.

A pandemia de covid-19 não impede que essas mobilizações aconteçam, com uso da internet, quando possível, ou ocupando as ruas, quando se chega ao limite do suportável – como esfregaram na cara do país os motoboys entregadores explorados durante o isolamento social do outros.

Celebrar o reggae pra valer é uma atitude consequente, que não se encaixa no conformismo frente ao mundo desigual. Peter Tosh já chamava a atenção para o problema dos homens de bem, lamentando que todo mundo clame por paz, mas ninguém clame por justiça.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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