O que: Dissolução e divisão do Império Otomano e seus territórios, por meio do Tratado de Lausanne, levando ao estabelecimento da moderna República da Turquia
Quando: 24 de julho de 1923
Onde: Turquia
O que aconteceu?
No início do século XX, o Império Otomano havia muitas décadas já estava em franco declínio – de fato, mais de um século – devido a erros estratégicos, perdas territoriais, demora nas reformas administrativas, baixa inovação tecnológica e corrupção desenfreada. Certa vez, o império representou a grande potência cujo território espalhava-se do Oriente Médio até a Europa; contudo, foi ultrapassado por seus vizinhos coloniais europeus e tamanha decadência concedeu ao estado o apelido de “homem doente da Europa”.
Apesar de várias tentativas de reforma pelos últimos sultões, como Abdulmecid I e seu período de Tanzimat (reorganização), Abdul Hamid II e seus esforços para exercer controle direto sobre os assuntos do estado, e mesmo a Revolução dos Jovens Turcos, mobilização secular ocorrida em 1908, o Império Otomano de fato ficou muito atrás de seus rivais europeus. Enfim, tais fatores culminaram na entrada do estado na Primeira Guerra Mundial, em 1914, liderado pela Alemanha, principal aliado europeu. Resultou na derrota militar do império de séculos em diversos frontes no Oriente Médio. Decorreu também na retirada de tropas otomanas de seus últimos territórios remanescentes na região do Levante, além da perda significativa de seus territórios europeus contra insurreições nacionalistas nos Balcãs, ainda antes da guerra.
Muito do discurso em torno da construção do Oriente Médio moderno de suas fronteiras artificiais concentra-se no Acordo de Sykes-Picot, estabelecido pelo Reino Unido e pela França para distribuir os territórios do então moribundo Império Otomano entre as potências coloniais europeias. No entanto, muitos estudiosos negligenciam o legado do Tratado de Lausanne, que abordou as fronteiras e o futuro da subsequente República da Turquia.
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Neste tratado de paz – resultado de uma conferência de sete meses, na cidade de Lausanne, Suíça – a Turquia oficialmente renunciou a todas as suas reivindicações sobre os territórios árabes, reconheceu a anexação britânica do Chipre e a anexação italiana das ilhas de Dodecanese, além de abrir os estreitos turcos de Dardanelos e Bósforo à navegação internacional. Em troca, as potências aliadas abandonaram seus esforços de intervir dentro das fronteiras turcas, além de desistirem de suas reivindicações por um Curdistão autônomo e territórios na Armênia; tampouco impôs qualquer controle à economia ou exército da Turquia.
O Tratado de Lausanne efetivamente concedeu legitimidade internacional a República da Turquia, após a queda do Império Otomano. Foi assinado em 24 de julho de 1923, há 97 anos. Turquia, Reino Unido, França, Itália, Japão, Grécia, Romênia e Iugoslávia assinaram o acordo, que entrou em vigor no dia 6 de agosto do ano seguinte.
O que aconteceu a seguir?
Embora o Tratado de Lausanne tenha constituído as bases do status quo e da presença da Turquia sobre a região, no último século, representa ainda um tópico de debate, em particular nos anos recentes. Em parte, voltou a despertar tensões entre a Turquia e seus vizinhos, como a Grécia.
De fato, kemalistas e secularistas turcos podem enxergar o acordo como produto de seu tempo, embora conquista incontestável do primeiro presidente Kemal Atatürk, para garantir o futuro e a estabilidade da Turquia. Entretanto, outros campos políticos questionam a viabilidade do tratado e essencialmente consideram-no fator limitador que obstrui os interesses geopolíticos do país.
O argumento deste campo – responsável em grande parte pela atual política internacional turca – é que a delegação da Turquia no momento do assinatura do tratado havia apenas recentemente emergido vitoriosa da Guerra de Independência Turca, ao recapturar a região da Anatólia, de modo que superestimou seus ganhos com o tratado. Esta conjuntura, argumentam, levou a equívocos que a delegação não pôde enxergar na ocasião, ou mesmo refletir de modo adequado, em particular no que se refere a uma série de ilhas mediterrâneas próximas da Turquia ignoradas pela negociação ou tomadas pela Grécia, conforme consentimento.
Violações de fronteiras consequentemente decorreram deste processo. Um exemplo, em 1996, quando unidades de elite turcas desembarcaram em uma ilha desabitada de 40.000 metros quadrados, localizada a apenas sete quilômetros da costa da Turquia. Outro exemplo, em janeiro deste ano, quando relatos surgiram de que a Grécia militarizou ilegalmente dezesseis de suas Ilhas no Mar Egeu; apesar dos pedidos turcos para voltar atrás, a Grécia recusou-se a fazê-lo.
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Em discurso proferido em Ancara, em 2016, o Presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan abordou a controvérsia sobre as ilhas estratégicas e expressou ressentimento sobre a posse grega sobre estes territórios, outorgada pelo tratado. “Veja agora as ilhas gregas. Nós desistimos destas ilhas. É uma vitória? Esses lugares eram nossos. Por que? [Porque] aqueles que se sentaram à mesa não eram dignos do desafio. Por sua incompetência, agora temos problemas”, declarou Erdogan.
A solução proposta pela Turquia sobre a questão é atualizar ou emendar o tratado sob o argumento de que já fora revisto ao menos duas vezes no passado – primeiro, em 1936, quando a propriedade dos estreitos mediterrâneos na região retornaram à Turquia; segundo, em 1939, quando a província de Hatay, antes controlada pela França, considerada então território da Síria, foi devolvida à Turquia após um referendo com seus habitantes.
Essa lógica foi novamente aplicada por Erdogan em entrevista à agência grega Kathimerini, em 2017, antes de sua viagem oficial a Atenas. Na entrevista, o presidente exigiu a revisão do tratado, ao alegar: “Primeiro e acima de tudo, o Tratado de Lausanne não diz respeito apenas à Grécia, mas a toda a região. Somente por essa razão – e penso que com o tempo todos os tratados precisam ser revistos –, o Tratado de Lausanne, diante dos acontecimentos recentes, exige revisão.”
O Presidente da Grécia Prokopis Pavlopoulos respondeu, ao reafirmar: “[O tratado] define o território e a soberania da Grécia e da União Europeia (UE) e, portanto, não é negociável”.
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Outro aspecto neutro do tratado está no consentimento de que todas as minorias religiosas receberiam salvo conduto para estabelecer suas próprias instituições religiosas e educacionais e eleger seus próprios líderes. Este ponto não foi devidamente cumprido pela Grécia, denuncia a Turquia, pois o estado grego constantemente impediu que a minoria de muçulmanos turcos, que compreende 150.000 cidadãos, pudesse eleger líderes e imãs, desde a década de 1990, à medida que é o governo quem escolhe os representantes da comunidade.
Em um contexto no qual a Turquia mais uma vez busca reafirmar seus direitos e seu papel no Mediterrâneo Oriental, além de tentar efetivamente melhorar relações com a União Europeia, mais uma vez, ainda podemos sentir os efeitos históricos do Tratado de Lausanne. O acordo expira em 24 de julho de 2023, o que poderá estabelecer precedentes para um novo papel regional da Turquia, ao passo que se implementa sua lista de objetivos para o ano de 2023, justamente no aniversário de um século desde o fim do Império Otomano.
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