A mudança dramática da política do Reino Unido em relação à China é sustentada por duas acusações. Primeiro: Pequim rompeu com suas obrigações conforme o tratado internacional em Hong Kong; segundo: executou violações hediondas de direitos humanos contra a população uigur, na província de Xinjiang.
Segundo o governo em Londres, a Lei de Segurança Nacional da China em Hong Kong ultrapassou certo limite. Seus poderes abrangentes foram vistos como ameaça à fórmula de “um país, dois sistemas”, que prometia aos residentes do território chinês a preservação plena de suas liberdades econômicas e sociais.
Após ser concedido à China em julho de 1997, Hong Kong deixou de ser colônia britânica. Apesar da soberania chinesa sobre o território, tornou-se então região administrativa especial com poderes extensos de autonomia.
A Grã-Bretanha, contudo, não parou ao condenar a nova lei de segurança chinesa. Em resposta, o Primeiro-Ministro Boris Johnson ofereceu a cerca de três milhões de residentes de Hong Kong a oportunidade de se mudarem ao Reino Unido e posteriormente adquirirem cidadania britânica.
Nesta conjuntura, os residentes de Hong Kong devem se considerar de algum modo privilegiados, quando comparados com a chamada geração Windrush, que emigrou à Grã-Bretanha de países do Caribe, entre 1948 e 1973. Dos 550.000 imigrantes que chegaram como subordinados da coroa britânica, com o objetivo de auxiliar na reconstrução do país, há ainda hoje cerca de 50.000 que não tiveram seu status regularizado. Estes imigrantes não possuem qualquer direito legal, vulneráveis a detenção ou deportação.
A diáspora caribenha à Grã-Bretanha coincidiu com a expulsão de 850.000 palestinos de suas terras. John Dugard, renomado jurista sul-africano, argumentou que a tragédia nacional palestina foi consequência direta da traição britânica sobre a chamada “confiança sacra” na Palestina. Sob os termos do mandato colonial, conferido pela Liga das Nações, em 1920, a Grã-Bretanha de fato aceitou a “confiança sacra” de ajudar o povo palestino a alcançar seus anseios de um estado independente e democrático. Este voto de confiança permanece descumprido até os dias de hoje.
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Desde 1948, a Grã-Bretanha teve muitas oportunidades de revisar suas injustiças históricas na Palestina. Ao assumir a responsabilidade moral pelos residentes de Hong Kong, poderia fazer o mesmo aos palestinos espoliados, que (de modo bastante significativo) não buscam o direito de serem recebidos em território britânico, mas apenas o direito legítimo de retornar às suas próprias casas. Seja diante da violação de tratados internacionais ou de direitos humanos, a resposta britânica aos abusos de Israel jamais passou de reprimendas verbais. Ainda sim, nas raras ocasiões em que ocorreu, nunca foram acompanhadas por alertas explícitos sobre consequências graves e materiais. Deste modo, enquanto a nova lei de segurança chinesa foi confrontada com ameaças de represália, o plano israelense de anexar terras palestinas foi meramente declarado “ilegal” e “inaceitável”.
Sobre a questão específica de direitos humanos, os palestinos tampouco saíram se melhor. Décadas de apelos por proteção internacional foram ignorados, apesar do catálogo extenso de abusos de direitos humanos. Passaram-se dez anos desde que o ex-primeiro-ministro britânico David Cameron descreveu a Faixa de Gaza como “campo prisional”. Após condenar o bloqueio israelense sobre o território, declarou: “Gaza não pode e não deve permanecer como campo prisional”. Embora sucessivos governos britânicos tenham reivindicado o fim do bloqueio, nenhum outro governante, antes ou depois de Cameron, chegou a ser tão contundente ou mesmo gráfico em sua descrição da situação em Gaza.
Não obstante, no que se refere à Palestina, políticos ocidentais costumam apresentar uma memória bastante curta. Desta maneira, foram surpreendidos, em janeiro de 2020, quando um grupo de bispos católicos da Europa e América do Norte os relembrou da tragédia em Gaza, após visita ao território sitiado. Ao retornar da viagem, os líderes religiosos emitiram uma declaração conjunta lamentando a “profunda crise humanitária” que testemunharam e confirmando que Gaza de fato tornou-se uma “prisão a céu aberto”.
Seja em campos prisionais, prisões a céu aberto ou campos de concentração, nenhum povo deveria ser submetido a tamanha indignidade, somente por sua raça, religião ou etnia. A intervenção do Primeiro-Ministro Boris Johnson, em nome dos muçulmanos uigures na China, é bastante bem-vinda; mas não deveria acabar aí. O premiê britânico deveria reconhecer de modo similar todo o sofrimento infringido aos dois milhões de palestinos que habitam a Faixa de Gaza. Afinal, sua humanidade é tão inestimável e sacrossanta quanto aquela do povo uigur.
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Se não fosse por seu passado colonial, a Grã-Bretanha não estaria envolvida nestes confrontos diplomáticos contemporâneos. Mesmo após a entrega de Hong Kong à soberania chinesa, em 1997, um compromisso foi feito aos residentes do território autônomo de que a fórmula de “um estado, dois sistemas” preservaria a democracia liberal e garantiria todas as devidas liberdades à população local. Hoje, os cidadãos de Hong Kong exigem que o Reino Unido cumpra suas promessas.
Meio mundo longe da China, promessas semelhantes foram feitas ao povo palestino. Primeiro, na Declaração de Balfour, de que nada seria feito para prejudicar os direitos civis e religiosos dos palestinos. Segundo, ao aceitar a “confiança sacra de civilização”, na concessão do mandato, para liderá-los à autodeterminação e à independência. Todavia, ambos os votos jamais foram cumpridos.
Evidentemente, caso o Primeiro-Ministro Johnson desejasse convencer o mundo de que está genuinamente comprometido com os direitos humanos, deveria então assumir de imediato suas responsabilidades históricas não apenas com Hong Kong, mas também com a Palestina.
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