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O filho de Alepo – uma entrevista com Abdulbaset Jarour

Abdulbaset Jarour em seu escritório em São Paulo. [Arquivo pessoal]
Abdulbaset Jarour em seu escritório em São Paulo. [Arquivo pessoal]

Abdulbaset Jarour, refugiado sírio no Brasil, é um ativista em defesa da pessoa em situação de refúgio. Após quase perder sua vida na Síria e ver sua família se espalhar pelo mundo, Abdo diz enxergar no Brasil uma nova esperança para o recomeço e procura fazer a diferença através de projetos engajados na educação, esporte e artes ou dando voz aos refugiados nas grandes mídias brasileiras.

Neste entrevista ao Monitor do Oriente Médio, Abdulbaset relata sua difícil trajetória desde a repressão síria à primavera árabe até sua chegada e adaptação à vida no Brasil. Da batalha por trabalho ao caminho dos projetos sociais, ele narra passagens de esperança e também momentos de dor, como foi a perda da mãe, que ele trouxe ao Brasil após muitas batalhas, e que acabou levada pelo coronavirus..

Como era sua vida na Síria antes de vir para o Brasil?

Tranquila, em Alepo, com meu pai, mãe, cinco irmãs e um irmão. Estudava e trabalhava no setor administrativo da empresa da família, do ramo de construção e imobiliária, e consegui abrir meu próprio negócio em sociedade com um amigo, uma loja de produtos eletrônicos. Até ser convocado, aos 20 anos, para servir o exército militar.

Com a primavera árabe, em 2011, fui obrigado a permanecer nos serviços militares e, em maio de 2013, Israel atacou as bases do governo. Eu estava lá. Muitos amigos morreram e até hoje me pergunto como consegui sair vivo. Percebi que não podia ficar mais na Síria e com a ajuda de Deus, consegui ir para o Líbano, ainda traumatizado e deprimido. Com ajuda de amigos, consegui trabalho, mas não estava feliz, procurei a embaixada de vários países para pedir visto, o Brasil foi o único que me concedeu.

Como foi sua chegada?

Me senti perdido. As únicas coisas que já tinha ouvido falar daqui era carnaval, futebol e o café brasileiro vendido na Síria. Me assustei com o grande movimento de pessoas na cidade de São Paulo. Sem conseguir trabalho no início, busquei outros caminhos. Comecei a me envolver com projetos sociais, a ajudar os refugiados e cheguei a hospedar por um ano sete pessoas em minha casa, até acabar meu dinheiro. Fui acolhido por uma família de brasileiros que me ajudou muito e comecei a dar palestras sobre refúgio, migração, cultura árabe e sobre a Síria. Pouco a pouco, me envolvi com outros projetos, como a Copa dos Refugiados, considerado o maior projeto esportivo do mundo que envolve refugiados , que coordenei em seis estados brasileiros. Este ano, iriamos levar a copa para Londres e Argentina, mas devido a pandemia, tivemos que cancelar.

Divulgação da Copa dos Refugiados [ Arquivo pessoal]

Divulgação da Copa dos Refugiados [ Arquivo pessoal]

Como é o ativismo pelos refugiados?

Enfrentamos preconceito, xenofobia ou racismo. Temos também a barreira da língua e nos tratam como inferiores. Quando a vida me tornou refugiado, tive que assumir essa condição. Por gratidão por estar vivo, eu me tornei ativista pela bandeira da migração. Por isso, dou aula de capacitação para os refugiados, desenvolvo projetos esportivos de arte e cultura. Atuo também como vice-presidente da ong África do Coração. Sou embaixador do “Instituto Educação Sem Fronteiras”, que ajuda refugiados, investindo em educação formal através da busca de parceiros para a conquista de bolsas de estudos e ensino da língua portuguesa e outros cursos. Quero fazer faculdade,de Relações Internacionais, seguir firme na formação acadêmica e política, para mudar algo na vida. Queremos que os refugiados tenham acesso a ensino superior.

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Você conseguiu um destaque na mídia brasileira, por que?

Fui um dos primeiros refugiados da Síria, um cenário de guerra, no qual são envolvidos os 14 países mais poderosos do mundo, a chegar aqui. Ter sido do exército da Síria, minha sobrevivência e integração na sociedade brasileira, foram alguns dos fatores que me ajudaram a conseguir mídia.

Fui entrevistado em vários programas brasileiros de grande audiência, participei de muitos documentários de variados canais e muitas entrevistas também em canais internacionais.

Cada um tem uma história diferente, porém, muita gente não estava preparada para falar em público, por medo ou trauma. Eu consegui superálos para dar mais visibilidade aos refugiados.

Abdulbast Jarour no programa da rede globo “ Encontro com Fatima Bernades.”[Arquivo pessoal]

Abdulbast Jarour no programa da rede globo “ Encontro com Fatima Bernades.”[Arquivo pessoal]

Como vê o Brasil, atualmente, sob Jair Bolsonaro, para os refugiados?

O atual governo encerrou com o programa “Pacto Global da migração” e isso prejudicou muito, não só os Imigrantes como também os brasileiros que vivem fora do Brasil. Na população brasileira, menos de 1% é composto por refugiados e Imigrantes , já no exterior existem 3 milhões de brasileiros. O discurso do presidente dirigido aos refugiados e imigrantes só alimenta a xenofobia. O Brasil precisa criar urgente novas medidas e políticas públicas Para Acolher, proteger , promover, integrar.  Somos todos filhos da mesma terra, temos o direito de migrar, estamos aqui presentes, mesmo se falarem sim ou não, estamos lutando por nosso direito, pela sobrevivência.

A Síria acolheu muitos refugiados ao longo dos anos e das guerras em seu entorno, você tinha contato com esses refugiados?

Na Síria é difícil saber de qual região é a pessoa, as vezes estou falando com um palestino, mas é como se fosse um sírio e isso se repete com os iraquianos. A língua é a mesma, só muda o sotaque e algumas palavras. Não posso dizer como um refugiado vive na Síria, porque eu não era um, mas posso dizer que era difícil identificar uma pessoa como refugiado. No Brasil é bem diferente, é outra língua, outra cultura, costumes.

Você pensa em voltar à Síria?

Sinto muita saudade, a Síria está em coração, em meu sangue, se eu não puder voltar, certamente, meus filhos ou netos, irão. Tenho esperanças de um dia retornar.Mas no momento não consigo pensar nisso. Só poderá acontecer quando a Síria for um país seguro, democrático e livre.

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Infelizmente, sua mãe faleceu no Brasil devido à covid-19. Como está sendo esse processo de luto longe dos familiares?

Meu primeiro sonho quando cheguei no Brasil foi de trazer minha mãe e minha irmã caçula para morar comigo. Foi uma grande  batalha que começou a tomar forma  quando eu recebi convite de uma equipe de jornalistas da TV Cultura para fazer um trabalho de intérprete no Líbano. Acompanhei os jornalistas por todo o país fazendo entrevistas com refugiados palestinos. Através dessas andanças,contatei um coiote ( agente que conduz imigrantes entre as fronteiras dos países) e o contratei para levar minha mãe ao Líbano. Após o término do meu trabalho, voltei ao Brasil e minha mãe ficou com minha irmã. Aqui percorri um longo caminho para conseguir traze-las. Foi minha maior felicidade, a chegada delas e nosso reencontro tiveram até cobertura da mídia .

Tentei por todas as maneiras deixá-las felizes, levei-as à praia, almoços e jantares, tanto com árabes como brasileiros e até ao carnaval, Mas não deu certo. Traumatizadas e deprimidas devido a tudo que viveram na Síria, aqui no Brasil a tristeza delas só fez aumentar.

Após um ano e muitos pedidos, comprei a passagem da minha irmã, pois seu passaporte ja estava quase vencendo e minha mãe iria logo em seguida, Mas aconteceu a declaração da OMS sobre a pandemia mundial e todos os países fecharam a entrada. Minha mãe ficou ainda mais desesperada e com isso sua diabetes subiu, fazendo que eu levasse ela ao hospital por diversas vezes, e ela acabou sendo infectada pelo coronavírus.

Foi internada no primeiro dia do Ramadã, lutou durante todo mês sagrado pela vida, mas infelizmente, faleceu no final do mês.

Me senti na cena de um filme muito triste, não acreditava no que estava acontecendo, como pôde acontecer tudo isso comigo e com minha família? Pela nossa religião, acreditamos que tudo está escrito, mas é muito triste. Minha mãe sempre foi tudo para mim na vida, estou realmente mal, mas continuo aqui lutando por minhas irmãs, os refugiados, e tentando entender tudo o que aconteceu comigo. Estou escrevendo meu livro que terá o titulo ” Filho de Alepo” e nele contarei toda minha história. Consegui salvar minha mãe da guerra, mas não consegui salva-la da morte.

 Abdulbase Jarour com sua mãe, Khadouj Makhzoum . [Arquivo pessoal]

Abdulbase Jarour com sua mãe, Khadouj Makhzoum . [Arquivo pessoal]

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