A Tunísia e as armadilhas da experiência democrática

Tunisianos reúnem-se em frente ao Sindicato Geral de Trabalhadores da Tunísia (UGTT) para relembrar o 9° aniversário da deposição do Presidente Zine el Abidine Ben Ali, em Túnis, capital da Tunísia, 14 de janeiro de 2020 [Yassine Galdi/Agência Anadolu]

Quando a Tunísia deu início ao que se tornou uma onda de revoluções e levantes árabes, no inverno de 2010, de fato confirmou similaridades flagrantes entre si, Egito e outros países árabes, no que se refere à corrupção endêmica e a falta de direitos democráticos ou justiça social. Embora tenha influenciado a indignação popular e incitado chances de novos levantes por toda a região do Oriente Médio e Norte da África, nada disso poderia negar o fato de que cada país assumiria seu próprio caminho adiante. Na ocasião, as distinções entre Tunísia e Egito tornaram-se claras.

De início, vale observar que o papel do establishment militar era bastante diferente: na Tunísia, permanecia longe da política; no Egito, interferia. Além disso, restrições à liberdade de expressão e de mídia, sob a mão de ferro do então Presidente da Tunísia Zine el Abidine Ben Ali, impunham-se severamente, à medida que o povo egípcio resguardava algumas poucas liberdades sob o regime de Hosni Mubarak.

A oposição islâmica também era distinta: na Tunísia, estava exilada; no Egito, organizações islâmicas exerciam um papel cotidiano na política e na sociedade civil, embora restrito. Apesar da corrupção generalizada, da pobreza e do desemprego crônico, na Tunísia, havia alguma melhora nos níveis de alfabetização entre cidadãos de classe média. No Egito, contudo, a corrupção, a miséria e o desemprego eram acompanhados por taxas cada vez maiores de analfabetismo e pela deterioração na qualidade das instituições de ensino.

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Era inevitável, portanto, que os resultados revolucionários fossem diferentes em ambos os países. Na Tunísia, as forças armadas de fato decidiram deixar a vida política do país em mãos civis; no Egito, um Conselho Militar determinou a fase de transição após a deposição de Mubarak e estabeleceu assim um destino ambíguo à política nacional.

Restrições à liberdade de expressão e imprensa também desapareceram no espaço público plural da Tunísia, mas o pluralismo foi acompanhado, desde o início, por uma violência simbólica e verbal. A essência disto está na opressão às mulheres e ao uso do discurso político islâmico (em particular, salafita), a fim de contrapor ou pressionar forças progressistas ou de esquerda.

No Egito, não obstante, a revolução revelou em seguida uma nova abertura do espaço público e do diálogo sobre política e sociedade, conduzidos inicialmente com racionalidade e aceitação do outro. Então, voltou-se gradualmente à exclusão e acusações de traição ao país, que tornaram o espaço público cada vez mais hostil, conforme restrições à liberdade de expressão se restabeleceram.

Alguns grupos islâmicos na Tunísia foram capazes de utilizar sua experiência no exílio para abrirem-se gradualmente à agenda liberal ou progressista e assentir com um roteiro para reconstruir instituições estatais para a nova república. Tais grupos ainda existem hoje, apesar de assolados por rivalidades e debilidades próprias, como testemunhamos. No Egito, as forças islâmicas dominaram a vida política e a sociedade e passaram a controlar instituições estatais. Confrontos com a esquerda e movimentos progressistas decorreram na falta de qualquer consenso sobre um roteiro para a transição democrática do país. As forças armadas então aproveitaram o cenário para realizar um golpe contra o processo democrático, apoiado por uma coalizão política de liberais e mesmo representantes de esquerda, que resultou na deposição dos grupos islâmicos no poder.

Os tunisianos descobriram a gravidade da corrupção estrutural nas instituições do estado e na sociedade, segundo pesquisadores locais, tão contundente quanto a corrupção histórica das Filipinas ou de países latino-americanos, na década de 1980. Tais problemas demandaram uma confrontação política abrangente, como iniciativa das próprias forças islâmicas tunisianas.

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A corrupção institucional e as redes de estado profundo no Egito, porém, afetaram as principais fontes de riqueza que poderiam ainda circular dentre a população. Segundo estudos realizados por organizações internacionais anticorrupção, a situação no Egito ainda não está no mesmo nível da Tunísia, de modo que o problema não foi abordado efetivamente durante a transição democrática, entre 2011 e 2013.

Tais diferenças entre Tunísia e Egito são evidentes desde 2011 e definiram os caminhos distintos tomados por ambos os países. Estamos juntos para conquistar nossos sonhos legítimos de vida, liberdade e dignidade humana, mas há muito ainda a ser feito. Ainda há grave pressão constante a nossas liberdades e direitos, por aqueles que usam a religião como álibi para um ponto de vista superficial sobre a sociedade e sua diversidade. Os direitos das mulheres, por exemplo, são cotidianamente negados por alguns destes grupos, que enxergam a democracia com desconfiança e desejam retornar no tempo.

Hoje, após o breve experimento democrático no Egito chegar ao fim, o país possui um governo que tende flagrantemente a uma visão sobre desenvolvimento nacional no qual figuras militares, policiais e tecnocratas são hegemônicas. Enquanto isso, a Tunísia enfrenta grandes desafios devido a instituições políticas ainda fracas, queda na confiança popular e agravamento da crise econômica nacional. Mesmo assim, a experiência democrática tunisiana ainda não fracassou; suas chances de sucesso não estão abaixo de serem redimidas.

Este artigo foi publicado originalmente em árabe, pela rede Al-Quds Al-Arabi, em 10 de agosto de 2020

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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