Vamos completar dez anos do entusiasmo mundial com os levantes da Primavera Árabe. A queda do ditador Hosni Mubarak, no Egito, logo após a derrubada do tunisiano Zine El Abidine Ben Ali, reverberou em levantes de esperança pelos continentes. Foi, em particular, importante para as lutas históricas dos movimentos de luta contra esses regime, engrossados por multidões que agora se falavam por celulares..
No mesmo dia em que manifestantes erguiam as solas dos sapatos na Praza Tahir em gestos de desprezo pelo ditador egípcio expulso do poder, um encontro internacional de milhares de ativistas do Fórum Social Mundial, no Senegal, interrompia seções e modificava agendas para saudar, em uma improvisada conexão com a Praça Tahir, a determinação popular que parecia estar ajudando a mudar os rumos da história.
O preço pago por aquela juventude entusiasmada foi alto, com 850 manifestantes mortos, quase todos executados a tiros pela polícia no Cairo e em Alexandria entre dezembro de 2010 e fevereiro de 2011, até a queda de Mubarak. Mas enfim, ele caiu. E o mundo festejou ao vivo.
As vitórias da Tunísia e Egito deram impulso a uma série de primaveras e ocupações jovens em direção a sonhos mais democráticos para o mundo. As novas tecnologias de comunicação e gerações esperançosas em tomá-las a seu favor pareciam capazes de desafiar o poder tirânico das armas e das finanças.
Apenas dois anos depois, porém, uma outra praça do Cairo testemunhou o revés desse sonho, com o maior massacre de manifestantes de que se tem notícia em um único dia e lugar. E aconteceu sem que o mundo viesse abaixo para impedi-lo durante as 12 horas seguidas de morticínio a olhos vistos ou para punir seus responsáveis.
Em 14 de agosto de 2013, um dia como este, milhares de pessoas, mulheres e homens, trabalhadores e jovens ativistas, famílias inteiras e suas crianças se encontravam reunidas – já pelo segundo mês – na Praça Rabaa al-Adawya do Cairo, para protestar contra o golpe militar que acabou com as conquistas democratizantes da chamada primavera. O presidente democraticamente eleito, Mohamed Morsi, foi deposto pelos militares e colocado na prisão. Em seu lugar, assumiu o comandante Abdel Khalil as-Sisi
Durante aquele dia, a forças golpistas voltaram suas armas contra a multidão e atiraram, indiscriminadamente, sem cessar. Tratores passaram por cima dos protestos. Policiais atearam fogo nas tendas de pessoas acampadas no local. Depois incendiaram corpos de mortos e agonizantes, segundo relatos. E executaram feridos que eram socorridos por médicos perto dali.
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Oficialmente, mil pessoas foram mortas na Praça Rabaa e quatro mil feridas. Inclusive a sentença de prisão perpétua do velho ditador Mubarak foi anulada logo depois. Junto com os mortos da primavera, acabou também a ilusão de algum socorro da comunidade internacional. As redes sociais tão poderosas na primavera árabe agora pareciam não alcançar mais nenhum universo ativo e eficaz de solidariedade mundial. Sobraram, ao seu lado, as vozes dos movimentos sociais e organizações de direitos humanos atentas ao avanço da repressão.
O que aconteceu em Rabaa, concentrado em um único dia, é conhecido das populações da América do Sul desde a colonização, com o massacre de milhares de indígenas e escravização de africanos, e está na memória recente da violência que sustentou as ditaduras do século passado.
Na Argentina, o golpe de 24 de Março de 1976 pôs fim ao governo constitucional de Isabel Perón e instalou uma ditadura sanguinária que deixou um saldo conhecido de 30 mil mortos e desaparecidos.
No Chile, os militares depuseram o presidente Salvador Allende e por dois meses, a partir do dia 12 de setembro de 1973 , o Estádio Nacional de Santiago recebeu pessoas aprisionadas nas ruas e nas casas pelo regime do general Augusto Pinochet. Das 40 mil recolhidas, interrogadas e torturadas, 400 foram mortas ali mesmo.
O governo instalado pelo golpe militar no Chile durou de 1973 a 1990, deixando um saldo oficial de mais quarenta mil vítimas – embora grupos de direitos humanos estimem em mais de cem mil – entre presos políticos torturados, mortos e desaparecidos. Duzentos mil foram forçados ao exílio.
Desde sempre, as ditaduras se conectam e apoiam. Na América do Sul, foram instaladas em acordo dos militares do Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai com os Estados Unidos, através da CIA , articulados na chamada Operação Condor, para combater influência da esquerda no continente e eliminação de opositores.
Sempre envolveu, além das armas, o controle da comunicação. Como explicou a pesquisadora Mariana Joffily, da Universidade de Santa Catarina, “a tomada do poder pelos militares no Brasil foi interpretada pela opinião pública estadunidense como uma defesa da democracia contra um ataque comunista. O Departamento de Estado orquestrou um esforço de desinformação junto à imprensa e ao Congresso, para assegurar que não prevalecesse uma visão negativa do evento e para que a participação dos EUA na empreitada permanecesse desconhecida.”
No Brasil, entre vinte mil pessoas foram torturadas desde o golpe que depôs João Goulart em 1964 até 1985. Pelo menos 434 pessoas foram mortas ou seguem desaparecidas e quase cinco mil políticos foram cassados.
Muitos ingredientes do que a América do Sul já viveu, reaparecem no cenário político, sob novas versões, entre golpes brancos que depuseram presidentes em Honduras, Paraguai, Brasil e Bolívia, ou os ameaçam, como na Venezuela, outra vez em alinhamento aos Estados Unidos, e novamente sob estranhos feitos da comunicação que convencem oprimidos e iludidos da classe média a aplaudirem e votarem em seus opressores.
O que se diz é que, no limiar da terceira década do terceiro milênio, há novas formas de controlar o imaginário e empurrar milhões à servidão política, sem precisar da violência. Mas até este discurso tem sua dose de ilusionismo e acoberta o fato de que estamos sim testemunhando morticínios e genocídios atuais, inclusive internamente, sob um estranho efeito anestésico que nos afasta da realidade e obscurece a memória. As ditaduras na América do Sul não estão tão distantes de nós no tempo e na história para que pareçam menos importantes quando um governo democraticamente eleito, como o de Dilma Rousseff, é deposto em golpe travestido de impeachment e um adorador da morte e da tortura é eleito.
Há uma inscrição na Arquibancada do Estádio Nacional de Santiago para ensinar que “um povo sem memória é um povo sem futuro”. A memória é incômoda quando sabemos que a mesma máquina de silenciamento está viva agora, empregada sempre que necessária para o controle da política onde quer que seja. A menos que deixe de ser tolerada longe ou perto, indistintamente. O vazio impune da Praça Sanaa, do outro lado do mundo, nove anos depois, é um aviso mal disfarçado de que a vigília ativa contra o perigo diz respeito também a nós.
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