O Presidente da França Emmanuel Macron não está em posição alguma para pontificar ao Líbano sobre a necessidade de reformas políticas e econômicas. Ao mesmo tempo em que milhares de libaneses tomam as ruas de Beirute, exigindo “vingança” contra as classes dominantes, o povo francês persistentemente faz o mesmo. Ambos os povos receberam como resposta violência policial e prisões arbitrárias.
Após a explosão de 4 de agosto, que matou mais de 200 pessoas e feriu milhares, a ironia tornou-se inexorável assim que Macron decidiu comparecer à capital do Líbano, em demonstração bizarra de “solidariedade” nas ruas de Beirute. Macron poderia ter levado sua turnê até as ruas de Paris, a fim de salvaguardar seu próprio povo, sob o fardo cada vez mais severo da desigualdade, do desemprego e das dificuldades sócio-econômicas.
Não obstante, o espetáculo francês assim continuou, mas no Oriente Médio. Tratou-se de uma cena perfeitamente coreografada, projetada para representar a antiga grandeza colonial da França. Em 6 de agosto, Macron impôs-se imperiosamente dentre as ruínas da enorme explosão, prometeu ajuda, justiça e jamais abandonar a ex-colônia francesa.
Uma jovem libanesa se aproximou do presidente francês, lágrimas nos olhos, e implorou: “Sr. Presidente, você está agora na Rua General Gourad; ele nos libertou dos otomanos. Liberte-nos também das autoridades de hoje!”
Nada disso é convincente: a visita súbita, os apelos por ajuda, a multidão emocionada em torno de Macron, uma série de eventos improvisados para refletir o amor eterno e a confiança incondicional do Líbano em relação à França.
Macron poderia poupar esforços e facilmente avaliar o dano causado pela devastadora explosão no porto de Beirute. Caso as milhares de imagens e infindáveis vídeos fossem insuficientes para expressar a ruína sem precedentes, de uma explosão que nos recorda Hiroshima, registros aéreos e imagens de satélite poderiam tê-lo feito.
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Mas Macron não viajou ao Líbano para conceder sua solidariedade sincera. Veio, porém, como um bom e velho político francês – para explorar o choque, o pânico e o medo de uma nação absolutamente estupefata, assolada pelo sentimento de ser traída pelo próprio governo e por uma enorme noção de solidão.
“Conversarei com todas as forças políticas para pedir-lhes um novo pacto. Estou aqui hoje para lhes propor um novo pacto político”, declarou Macron.
Certamente, o povo libanês depende urgentemente da instauração de um novo pacto político, mas jamais proveniente de uma proposta esquematizada na França. De fato, a França nunca representou uma fonte de estabilidade ao Líbano. Mesmo após o fim oficial do colonialismo francês sobre o país, em 1946, manteve-se sobre o Líbano a influência tóxica de Paris e a intromissão constante.
Sobretudo, a devastação no Líbano parece abrir as portas a mais um esforço do “capitalismo do desastre”: a noção de que um país tem de estar de joelhos como prerrogativa para intervenção econômica, política e, caso oportuno, militar.
Caso as palavras da jovem libanesa que implorou a Macron para “libertar” o Líbano de sua atual liderança não sejam escritas por algum audacioso roteirista francês, então representam de fato uma das mais deprimentes demonstrações da política moderna libanesa. Uma jovem, representando uma nação, rogando aos antigos colonizadores que subjuguem seu país mais outra vez, a fim de salvá-lo de si mesmo.
Esta é a cruz do “capitalismo do desastre”.
“Em momentos de crise, as pessoas se dispõem a ceder enormes poderes a qualquer um que prometa uma cura mágica – não importa se a crise é um colapso financeiro … ou ataque terrorista”, escreveu a aclamada autora canadense Naomi Klein em seu livro fundamental “Doutrina do Choque: A Ascensão do Capitalismo do Desastre”.
As decorrências políticas da explosão – não importa a causa – foram engatilhadas com perfeição caso observadas por aqueles que desejam garantir que o Líbano jamais alcance seu cobiçado momento de estabilidade e harmonia sectária. Sem precedentes na história moderna, a crise econômica em curso no país arrasta-se interminavelmente, à medida que a elite política permanece sem respostas e, na grande maioria, sequer sem interesse em procurá-las.
Em 7 de agosto, um tribunal com apoio da ONU estava previsto para emitir seu veredito sobre o assassinato do ex-Primeiro-Ministro do Líbano Rafic Hariri. A morte do ex-premiê, também decorrente de uma enorme explosão em Beirute, em 14 de fevereiro de 2005, dividiu o país e, de algum modo, dispôs o Líbano às mãos de entidades estrangeiras.
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Se o veredito, agora postergado, dividirá ainda mais a sociedade libanesa, ou ajudará a sanar suas feridas, é bastante incerto. A explosão no porto sem dúvida poderá asseverar a renovação de um mandato ocidental, liderado pela metrópole francesa, sobre o país do Oriente Médio.
Em 6 de agosto, quatro ex-premiês libaneses reivindicaram uma “investigação internacional” sobre as causas da explosão, na esperança de angariar pontos políticos contra adversários eleitorais. Na prática, o uso político do desastre instalou o cenário para mais outra crise sectária.
Forças locais rapidamente buscaram posicionar-se por trás de alguma estratégia política vencedora. “Não temos qualquer confiança nesta gangue no poder”, afirmou Walid Jumblatt, líder político da comunidade de drusos libaneses. Ele também fez apelos por inquéritos internacionais.
Tempos de crise nacional podem levar à união, embora temporária, entre diversas comunidades distintas, à medida que tragédias costumam assolar igualmente todos os setores da sociedade. No Líbano, contudo, a união permanece elusiva, pois a maioria dos campos políticos no país possui alianças que transcendem seu próprio povo e sua própria nação. As pessoas costumam recorrer a seus clãs e sectos devido à desconfiança sobre qualquer governo central. Políticos, ao contrário, buscam favores de potências regionais e internacionais – como é o caso da França de Macron.
A França, no entanto, não deveria representar o último porto seguro ao povo libanês, apesar de todo seu desespero, indignação e sentimento de profunda traição. A França está envolvida hoje em dois dos mais hediondos e prolongados conflitos na região do norte e oeste africano: Líbia e Mali, respectivamente. De modo bastante previsível, em ambos os casos, Paris também prometeu corresponder a uma força do bem. A Líbia tornou-se essencialmente um estado falido; o Mali permanece sob absoluta subjugação da França. Não é exagero argumentar que o estado francês está atualmente envolvido na ocupação militar ativa do Mali, um dos países mais pobres do mundo.
O Líbano deveria estar ciente de que sua atual tragédia é a oportunidade perfeita para que seus antigos mestres coloniais decidissem retornar. Seu regresso dificilmente salvará o estado e o povo libanês, perante a persistente calamidade que os assola.
O grotesco e perigoso ato político de Macron nas ruas de Beirute deve representar enorme motivo de preocupação a todos os cidadãos libaneses, ao menos àqueles que verdadeiramente preocupam-se com seu país.
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