Bilal Bakri migrou pela primeira vez no ventre de sua mãe, que saiu do Brasil com destino ao Líbano, terra de seu pai e de seus avós maternos e chegou em pleno início da invasão por Israel, na guerra de 1982.
Voltaria já adolescente, com 15 anos, junto com a família que buscava deixar para trás as constantes invasões e ataques israelenses. Ele recorda de uma infância no país dos cedros cercada de amor familiar, histórias de guerra e paixão pela leitura, incentivada pela mãe. Do pai e avô, recebeu a influência da causa palestina e da formação do pensamento político.
Nesta entrevista ao Monitor do Oriente Médio, Bilal Bakri olha para o Líbano preocupado com a irresponsabilidade que levou à explosão no porto de Beirute, mas também confiante de que o povo libanês não seguirá os passos dos Emirados Árabes na questão palestina. Vivendo no Brasil, médico, escritor, poeta, Bilal Bakri se dedica à profissão e às palavras, mas não perde a conexão com as lutas e dificuldades crescentes do povo palestino, frente a disputas e acordos internacionais que desafiam a solidariedade.
Como é ter nascido no auge de uma guerra?
É muito marcante, a começar pelos efeitos que isso têve sobre minha mãe. Quando nasci já fazia um mês desde que Israel tinha invadido o Líbano e só se retiraria totalmente do país no ano 2000. Nascer no meio de uma guerra é algo muito surreal, tem uma carga mística enorme e tem um “q” de predestinação. Acho que carregamos isso pela vida inteira. Mesmo não tendo sido diretamente consciente da situação, a influência vem desde a condição de feto e isso é científico. A guerra cria um ambiente do qual não se tem como fugir. Tem a parte trágica mas eu procuro enxergar pelo lado da força de vontade da vida. Nos países em guerras a taxa de natalidade aumenta, vide o povo palestino, que tem uma das maiores taxas de natalidades no mundo. E não é diferente no Líbano.
Você convivia com palestinos no Líbano?
Com crianças palestinas não, mas tive contato com a palavra Palestina desde sempre, sempre ouvi muitas histórias da Nakba. Meu avô, Ahmad Bakri vivia entre os palestinos, inclusive quando faleceu recebeu uma linda homenagem do grande poeta popular palestino Yousef El Hassoun.
Antes de voltar ao Brasil meu pai também lutou ao lado dos palestinos que fizerem uma resistência heróica à invasão de 1982. Sou de uma família que sempre apoiou a causa palestina. Desde criança fui educado a apoiá-la como uma causa sagrada. Na escola, aprendemos que nunca devemos aceitar o roubo de terras palestinas e a defender que a Palestina seja livre do rio ao mar.
O que me marcou muito, já na vida adulta, foi recentemente quando visitei o Líbano. Os campos de refugiados palestinos sofrem todo tipo de privação e miséria, uma coisa que me indignou muito é a condição de cidadão de segunda e terceira categoria imposta ao palestino no Líbano. Ao sírio também. O racismo é muito grande. No meio dos muçulmanos sunitas é menor do que nos demais grupos religiosos, mas infelizmente os refugiados já foram alvos de massacres durante a guerra e agora sofrem com esses preconceitos.
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Qual o motivo do retorno de sua família para o Brasil?
A guerra do Líbano que durou de 1975 à 1990 deixou muitas marcas. O pós guerra, na década de 90 foi de uma recessão e crise econômica fortes e ainda em 1996 aconteceram alguns conflitos com Israel que fez uma grande ofensiva em todo território do Líbano, O país estava instável e nossa situação econômica também se refletiu nisso, tivemos que buscar oportunidade melhor, na década de 80 estávamos bem prósperos, mas toda essa instabilidade do país nos forçou a buscar um lugar mais seguro e escolhemos o Brasil, com o qual a gente já tinha ligação, a família da minha mãe sendo toda daqui. Não poderia ter escolhido outro lugar.
Você formou-se em medicina e viveu no Amazonas como oficial médico do exército brasileiro. Como foi essa experiência?
Foi única, mágica, mística. Prefiro a palavra mística porque é uma experiência que une o científico com o literário, une o militar com o civil, tive a oportunidade de conhecer lugares únicos, reservas indígenas às quais só os militares tem acesso. Foi maravilhosa em todos os aspectos, uma experiência muito humana porque se entra em contato com comunidades e soldados humildes e se tem uma ideia melhor de como funciona o país.
Agora está trabalhando em meio à pandemia?
Sou médico patologista, da área de diagnóstico, ou seja, não tenho muito contato com os pacientes, mas tenho vários colegas de trabalho que se contaminaram, então ficamos apreensivos, É um teste de paciência para todos. Precisamos exercitar a meditação, o autocontrole. Em termos psicológicos têm sido muito difícil e em termos financeiros também houve uma piora geral, acredito que em todas as áreas. É uma época de crise, que atinge todo mundo. Procuro me enxergar como um afortunado por ainda ter um espaço em uma época tão ruim, mesmo me expondo ao risco, em uma época em que muita gente está quebrando, está perdendo o emprego e as oportunidades. Sou grato por poder contribuir de alguma forma e poder me manter no meio desse caos instalado, graças a Deus.
Além de médico você também é poeta e escritor, como surgiu sua paixão pelas palavras?
A história remonta minha infância no Líbano, sempre gostei de ler, meus pais sempre me estimularam, sempre gostei muito da língua árabe. Para escrever, além de inspiração, é preciso ser antes um leitor e eu sempre fui, tanto em árabe como em português. Não se consegue escrever se não for um leitor.
Quando a gente veio ao Brasil, minha mãe, fez questão de trazer os livros na mala. A gente tinha um supermercado no Líbano e que vendia livro, não conseguimos trazer todos mas um amigo da família que veio ao Brasil nos trouxe a obra completa do escritor egípcio Abbas Mahmoud Al-Akkad. Li todos e isso me influenciou muito.
Minha inspiração maior para começar a escrever foi quando estive no Amazonas, levei muitos livros escritos em árabes e o Al Corão. O livro Caminho da eloquência, de Ali ibn Abi Taleb também meu influenciou muito. Esse período no Amazonas foi um marco forte. Meu segundo ponto de inspiração foi quando fui a Meca em 2012, na Umrah, o ritual da visita. E outro momento foi quando fui morar em Botucatu, onde me casei, tive minha filha e me separei no espaço de um ano e meio. Essa experiência pessoal também foi um catalisador maior.
Publiquei meu primeiro artigo no blogue da Al Jazeera. Tenho contos e muitos poemas em árabe, bem mais do que em português. Na língua portuguesa não tive a oportunidade de publicar ainda, minha primeira publicação em português foi no site do Monitor do Oriente Médio.
Escrevo mais em árabe, textos literários, poemas, artigos políticos entre outros, mas gostaria muito de publicar meus textos e poesias em português e estou a procura de parceiros para isso.
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Você acompanhou, do Brasil, as imagens da grande explosão do dia 4 de agosto no porto de Beirute. Imediatamente o fato gerou muitas especulações, inclusive de que Israel poderia ter jogado um míssil. O que você pensou ao saber dessa catástrofe?
Em uma palavra, o principal responsável, independente dos fatos é o Hesbollah. Quem controla porto, aeroporto, fronteira terrestre, telecomunicações, o próprio estado libanês e que está no controle total da política, é o Hesbolah. O material explosivo pelo fato de estar no porto civil, comercial ameaçando a população, já estava errado e o estado libanês sabia da existência disso. Todo mundo sabe que o material que estava lá pertencia ao Hesbolah.
Sobre a hipótese de Israel ter atacado é até possível, não descarto essa possibilidade. Algumas testemunhas relataram terem visto aviões e caças no local antes da explosão ocorrer. Mas temos que apontar o dedo para o principal responsável, que é o Hesbollah, porque ele colocou armas onde não devia.
Parece ter havido uma pausa no processo do acordo de paz proposto por Donald Trump. Voce acredita nisso?
Acredito que essa pausa seja apenas uma manobra política que visa liquidar os direitos do povo palestino e favorecer Israel. Trump é um dos maiores sionistas da história dos presidentes dos EUA.
Esse acordo busca liquidar a causa palestina, é uma ofensa a todo sacrifício e luta do povo palestino, uma humilhação também para árabes e muçulmanos. Vender a Palestina é um acordo ultrajante e humilhante. A luta deve continuar.
Mesmo com a ONU e grande parte da comunidade internacional repudiando os assentamentos israelenses na Palestina, o crescimento dessas colônias e o despejo de palestinos de suas terras só aumentam. Não há resistência suficiente?
Isso reflete o estado atual dos países árabes e muçulmanos, um estado de caos instalado no Oriente Médio. A causa palestina perdeu o seu impulso, Israel insiste nessa política de mais assentamentos, de expulsar os palestinos de sua casa e de assassinatos, na minha opinião, como reflexo da saída de países importantes do apoio a causa palestina. O principal deles é o Egito, um estado grande e que deveria ter um papel bem mais preponderante. No entanto hoje o governo egípcio do general Sisi é um estado nanico, alinhado a um estado usurpador, terrorista e racista, como Israel, que não entende a linguagem da paz. Os árabes estão enfraquecidos,e talvez na história recente num dos seus piores períodos. Além de israel temos uma outra ameaça à unidade dos países árabes que é a disputa com o Irã. Então os árabes estão entre esses dois Estados e quem está pagando por isso é causa palestina.
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Recentemente foi assinado o acordo de paz entre Israel e os Emirados Árabes, você acredita que esse ato possa mudar a geopolítica do Oriente Médio?
Na verdade não vai mudar muito o que já acontece de fato. O que muda é que passará a ser público o que antes era feito às escondidas. Já faz alguns anos que os Emirados estão buscando essa normalização com Israel e de uma forma mais intensa de uns dois anos para cá. Já vinham disseminando isso na mídia do Golfo Árabe, com muitos jornalistas e intelectuais vendendo essa ideia de normalização com israel. Mas isso fará piorar a situação dos países árabes como Estados nacionais e como defensores de interesses nacionais maiores. Vejo esse acordo como uma humilhação, vergonha. Como nação árabe não devemos aceitar isso, os governantes dos emirados simplesmente fizeram vistas grossas a todos os massacres e atrocidades cometidas por israel. Encaro isso como uma derrota, uma traição para a causa palestina, muçulmana e árabe. Todo acordo de paz com Israel é uma traição. Não podemos ter paz com uma nação usurpadora, terrorista, racista e criminosa.
Você acredita que possa existir um acordo de paz entre Israel e Líbano?
A curto e a médio prazo não, porque a sociedade no Líbano é muito politizada e acredito que o povo libanês não aceite. Mesmo com o pessoal que está no poder não vejo campo para isso.