A economia em dificuldades e o setor de saúde do Sudão já afetado pela pandemia do coronavírus foram levados ao limite nas últimas semanas com as enchentes devastadoras, as piores em quase um século, varrendo o país. Com um aumento recorde de mais de 17,5 metros do nível do rio Nilo, causado por fortes chuvas sazonais no Sudão e na vizinha Etiópia desde meados de julho, grandes áreas do país do norte da África foram submersas na água. Pelo menos 114 pessoas foram mortas e quase 100.000 casas foram destruídas.
“Esta não é a primeira vez que o Sudão testemunha fortes inundações”, disse o jornalista sudanês Ahmed Abdul Wahab ao MEMO. “A cada duas décadas, muitas ilhas e vilarejos do país sofrem danos significativos e deslocamento como resultado das enchentes.”
A última inundação realmente severa foi em 1988, ele apontou. “O pior antes disso foi talvez em 1946, mas as inundações deste ano foram recordes e o nível de destruição é sem precedentes.”
Na verdade, as vidas de mais de 650.000 pessoas em todo o Sudão foram afetadas pelas enchentes, de acordo com o Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), com mais de 110.000 acessos apenas na primeira semana de setembro. Isso levou o governo sudanês a declarar estado de emergência de três meses.
A ativista ambiental de Cartum, Nisreen Elsaim, acredita que as mudanças climáticas têm desempenhado um papel na intensificação do nível de danos e destruição causados pelo fenômeno globalmente. “Acho que nosso governo e os dos países vizinhos deveriam levar as mudanças climáticas muito a sério e incluí-las em seus planejamentos e estratégias anuais”, alertou. Como conselheira jovem do Secretário-Geral da ONU sobre mudanças climáticas, suas palavras devem ser levadas a sério.
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No entanto, ela argumenta que o Sudão sofre catástrofes de enchentes porque o país está exausto por vários desafios e instabilidade econômica e política ao longo de muitas décadas. “O sistema entrou em colapso; a economia entrou em colapso e a infraestrutura entrou em colapso.”
A inundação certamente teve um impacto em todos os aspectos da vida dos que vivem no Sudão. A capital Cartum fica na confluência dos Nilos Branco e Azul, mas é apenas um dos 17 (de 18 no total) estados do Sudão afetados pelas enchentes.
Com centenas de milhares de desabrigados e muitos se abrigando não só em tendas, mas também em escolas em todo o país, em vez de setembro, o início do ano letivo foi adiado pela primeira vez para novembro, no mínimo. A economia também sofreu um grande golpe.
“As perdas foram estimadas em centenas de milhões de dólares de capital perdido, das fazendas ao gado, da infraestrutura às casas”, explicou Elsaim. “A maior parte de nossas safras e exportações dependem de recursos naturais como vegetais e gado.” Muitos deles foram perdidos ou destruídos.
Abdul Wahab expressou seus temores pela temporada de colheita de inverno e o impacto que os danos continuarão a ter nas vidas daqueles que dependem da agricultura para o consumo doméstico e também para ganhar a vida.
O setor de saúde não está muito melhor. A estagnação da água em áreas inundadas pode levar a sérios problemas de saúde, o que só aumentaria o sofrimento das pessoas afetadas. “A água se misturou ao esgoto, o que aumenta os riscos à saúde e a vulnerabilidade do sistema de saúde”, observou o jornalista.
“Depois de uma enchente, normalmente temos surtos de cólera, febre tifóide, malária e outras doenças transmitidas pela água”, acrescentou Elsaim. Escorpiões e cobras também escaparam da enchente indo para as aldeias em terrenos mais elevados, e, como consequência, um aumento de picadas.
Como as comunidades afetadas pela enchente continuam a depender da ajuda humanitária e da assistência alimentar enviada para Cartum diariamente, Abdul Wahab e Elsaim expressaram ceticismo sobre a capacidade do governo de lidar com esse nível de devastação e criar soluções sustentáveis para o fenômeno recorrente.
“A incapacidade do estado de lidar com esta crise deixou muitas pessoas sem esperança”, disse Abdul Wahab. “O governo de transição já está lutando contra a pandemia do coronavírus e tantos outros problemas.” Além disso, algumas comunidades sudanesas não acataram os avisos do governo instando-as a evacuar as áreas próximas ao Rio Nilo e, portanto, seguem com maior probabilidade de serem afetadas pelas enchentes. “Muitos preferiram ficar perto do rio, pois a falta de serviços e desenvolvimento em outros lugares os desencoraja a se mudar.”
Após um ano no cargo, desde que o acordo de divisão de poder foi assinado entre as forças armadas e tecnocratas civis pró-democracia, em sequência à derrubada de Omar Al-Bashir, o governo de transição do Sudão enfrentou protestos em massa em Cartum no mês passado, exigindo uma reforma política mais rápida contra o pano de fundo de uma economia em deterioração. Após as enchentes e uma queda acentuada no valor da libra sudanesa, o governo tem enfrentado cada vez mais pedidos de ação.
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Projetos de desenvolvimento sustentável, no entanto, parecem um sonho, à luz da severa escassez de necessidades básicas, incluindo combustível, pão, farinha e gás de cozinha. “A infraestrutura sustentável precisa de financiamento e o governo não pode financiar os salários dos professores, muito menos um trabalho de infraestrutura tão grande para evitar uma tragédia repetida”, disse Elsaim. “É uma catástrofe.”
No entanto, ela sugeriu uma estratégia de três estágios que poderia, ela acredita, ajudar o Sudão a sair desta crise e criar uma solução de longo prazo para o fenômeno. A primeira fase é sustentar os esforços para controlar a quantidade de danos causados pelas inundações atuais e responder às necessidades urgentes de todos os afetados. Isso incluiria a criação de campos apropriados para os deslocados pelas enchentes; evacuar residentes para áreas mais altas e secas; e realização de campanhas de conscientização sobre saúde, saneamento e acesso à água potável. Ela acrescentou que o Ministério da Saúde do Sudão e a Organização Mundial da Saúde precisam trabalhar juntos e implementar medidas para prevenir surtos de doenças como cólera e assim por diante. “Caso contrário, a crise da saúde será maior do que a crise econômica e a perda de infraestrutura.”
A segunda fase, ela argumentou, seria buscar maneiras sustentáveis de prevenir tal catástrofe no futuro. Para evitar que as casas “caiam como biscoitos”, os materiais de construção precisam ser trocados e as autoridades precisam rever seu planejamento para áreas residenciais. É importante ressaltar que eles também devem implementar projetos de captação de água.
“Temos muitas áreas inundadas agora, mas também temos áreas que sofrem com a seca e sede”, explicou Elsaim. Ela descreveu a situação como uma “tragédia” e destacou que algumas pessoas precisam caminhar 5 ou 6 km para conseguir água para suas casas.
A terceira fase, segundo Elsaim, será trabalhar no desenvolvimento de um sistema de previsão e alerta antecipado as cheias. As inundações tornaram-se uma ocorrência mais regular, mas a intensidade e os níveis de água resultantes e a destruição variam de um ano para o outro.
No centro do debate está a Grande Barragem da Renascença Etíope (GBRE), um projeto hidrelétrico de 4 bilhões de dólares no Rio Nilo com o qual a Etiópia espera atender às suas necessidades de energia e torná-la o maior exportador de energia da África.
Sudão e Egito, que dependem do Nilo para seu abastecimento de água doce, vêem o GBRE como “uma ameaça de proporções potencialmente existenciais”, uma vez que a barragem esteja totalmente operacional. Os três países estão engajados em uma série de negociações desde o início da construção com o objetivo de resolver os problemas e garantir um acordo que garanta fluxos mínimos de água no Nilo.
Antes das últimas inundações, Addis Abeba decidiu unilateralmente encher o reservatório. O debate agora é sobre seu efeito nas inundações no Sudão: ajudou ou piorou as coisas?
“A barragem é como uma bomba-relógio”, disse Abdul Wahab. “A Etiópia parece não prestar atenção ao Egito e ao Sudão e não se preocupa com os riscos.”
De acordo com Youssef Ibrahim, professor de recursos hídricos e ex-funcionário do Ministério sudanês de Irrigação e Recursos Hídricos, a Etiópia começou a encher a barragem no início da estação chuvosa em julho. “Se tivesse esperado o pico da temporada de inundações no final de agosto, os efeitos negativos no Sudão teriam sido mitigados”, disse ele ao Monitor.
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Muitos argumentam que as inundações teriam sido ainda piores se a Etiópia não tivesse começado a encher o reservatório. O Ministro da Irrigação do Sudão, Yasser Abbas, acredita que o GBRE poderia de fato proteger o Sudão de inundações.
Elsaim tem empatia com essa visão. A barragem pode proporcionar uma situação vantajosa para o Sudão, Egito, Etiópia e outros países da bacia do Nilo se os governos trabalharem juntos para garantir a segurança hídrica do Sudão e do Egito e avaliar e mitigar cuidadosamente quaisquer consequências negativas. Ela acrescentou que grandes questionamentos permanecem, no entanto, em relação ao impacto da barragem nos meios de vida das pessoas bem como em sua segurança. “A barragem da Etiópia reterá mais de 14 milhões de metros cúbicos de água.” Isso destaca o risco de desastre se a barragem sofrer qualquer mau funcionamento estrutural.
Tanto Nisreen Elsaim quanto Ahmed Abdul Wahab concordam que os governos mundiais e as organizações internacionais precisam fazer mais para ajudar o povo sudanês a reconstruir suas vidas e ajudar o Sudão a conter a crise e implementar medidas de segurança de longo prazo.
“O Sudão não tem capacidade para se reabilitar ou reconstruir e aliviar os danos”, alertou Elsaim. “Acho que é um grande desastre e acho que o povo sudanês não conseguirá se recuperar tão cedo.”
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