A vitória do partido MAS, na Bolívia, representa o sentimento que seu candidato e virtual presidente eleito, Luis Arce, expressou ao conhecer o resultado das pesquisas de boca de urna: esperança, novamente.
Sai do horizonte imediato o terror espalhado pelo governo transitório de extrema direita e fundamentalista de Jeanine Añez, alinhado aos Estados Unidos no ataque às aspirações democráticas da América Latina .
O país mais indígena do continente comemora a oportunidade de lavar a alma de um trauma que se arrastou pelos últimos nove meses, desde o golpe que forçou à renúncia e ao exílio o ex-presidente Evo Morales, principal liderança do MAS.
Realizadas após sucessivos adiamentos, as eleições que deveriam ter ocorrido inicialmente 2 de agosto , depois em 6 de setembro e finalmente realizadas em 18 de outubro, ainda terão seu resultado oficializado com a total apuração dos votos. Mas já começam as apostas sobre o que virá na conformação do novo governo e seus acordos, dentro e fora da Bolívia.
As raízes e compromissos indígenas da chapa eleita foram enfatizados com a escolha do candidato a vice-presidente, David Choquehuanca Gramas. Mas fazer pender a balança em favor do projeto popular, anticolonial e de esquerda virtualmente eleito não será tranquilo.
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A defesa da justiça ambiental da Pachamama terá de confrontar-se com as pressões do agronegócio e das mineradoras, e as cobiças sobre as reservas de 21 milhões de toneladas de lítio já certificadas, por exemplo.
Não é por acaso que as redes sociais lembraram nesta terça de Elon Musk, fundador da Tesla, interessado no lítio boliviano para as baterias de seus automóveis, e que não teve escrúpulos em postar, em julho passado, a frase que agora o coloca de volta nos top trends do twitter: “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”. Musk respondia a um outro post sobre o golpe que afastou Evo Morales e que dizia: “Você sabe o que não interessa às pessoas? O governo dos EUA organizando um golpe contra Evo Morales na Bolívia para que você possa obter lítio lá.”
O governo será testado quando precisar promover o conceito de bem viver em meio ao aceno das grandes obras; assegurar o respeito aos cocaleiros e proteger seus direitos frente às campanhas de criminalização e tentativas de associação ao narcotráfico; ou priorizar o combate à pobreza em disputa com o sistema financeiro. Externamente, as relações com países do Oriente Médio, em especial o povo palestino, não estarão livres de tensões. E, internamente, a busca de um caminho democrático terá de lidar com feridas abertas.
A Bolívia é um país multiétnico, cuja diversidade foi reconhecida pela constituição de 2009 que instituiu oficialmente o “Estado Plurinacional da Bolívia” e colocou a bandeira indígena Wiphala em pé de igualdade com a única oficial até então. Dez anos depois, o símbolo Wiphala foi queimado nas ruas e arrancado do bordado dos uniformes militares, enquanto a população indígena e movimentos populares tornaram-se novamente alvos de dura perseguição.
Uma das imagens mais pavorosas da divisão instalada na Bolívia pela campanha de ódio da extrema direita foi a de Patrícia Arce, então prefeita da cidade de Vinto, com os cabelos cortados à força e o corpo pintado de vermelho, sendo arrancada do cargo e arrastada pelas ruas. Patrícia agora foi eleita senadora, mas as dores da Bolívia são históricas.
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Os nove meses a partir do golpe empurraram a população de volta ao convívio com uma política branca e colonial que aprendeu a fazer uso da religião e da violência para sufocar a resistência dos povos originários.
Esse período sombrio transcorreu sob o governo transitório de Jeanine Añez, parlamentar de pouca expressão eleitoral que se autoproclamou presidenta e que, brandindo uma Bíblia, chamou os aimarás de satânicos, sugeriu que indígenas voltassem para as terras altas e anunciou que Deus estava de volta ao governo.
Sua cruzada deixou 35 mortos e 800 feridos e leis modificadas para dar impunidade a policiais e militares que atacaram manifestantes e mataram agricultores para impor sua nova ordem. A sanha violenta recorreu também ao apoio internacional.
Em um dos momentos mais constrangedores da política externa da América Latina, o governo interino boliviano pediu ao Estado de Israel ajuda para reprimir o povo boliviano. O então ministro do Interior de Añez, Arturo Murillo, declarou sobre o pedido aos israelenses: “Nós os convidamos para nos ajudar. Eles estão acostumados a lidar com terroristas. Eles sabem como lidar com eles”. Os terroristas, no caso, eram os manifestantes da oposição. E o aprendizado de Israel, no caso, se referia ao uso de suas armas contra os palestinos.
A relação da Bolívia com a vizinhança, bem como com países do Oriente Médio, é objeto de atenção, porque as guinadas no último período foram bruscas.
Desde 2009 até o ano passado, estavam rompidos os laços com Israel, uma reação do governo aos ataques israelenses à Faixa de Gaza. O governo de Evo apoiava também a campanha internacional de Boicote, Desinvestimento e Sanção (BDS) promovida pela sociedade civil palestina contra Israel. Com Jeanine no governo, a posição mudou radicalmente.
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Investindo no realinhamento com os Estados Unidos, a governante transitória rompeu com os vizinhos Venezuela e Cuba, expulsando 725 médicos cubanos, e reatou laços diplomáticos com Israel.
Nesta terça-feira, Lucho Arce começou a falar sobre política externa com os velhos aliados, declarando à Agência Efe:. “Vamos restabelecer todas as relações. Este governo (de Jeanine) agiu de forma muito ideológica, privando o povo boliviano do acesso à medicina cubana, à medicina russa, aos avanços na China.”
Em relação ao Oriente Médio, às relações com o Irã e os palestinos, e a reinclusão de Israel, a volta da esquerda ao governo da Bolívia encontra uma geopolítica tensionada pelos acordos de normalização da ocupação israelense avançando entre países árabes sob a mediação dos Estados Unidos. O novo governo ainda deverá se manifestar. Por ora, Luis Arce afirma que seu governo estará aberto a todos os países, sem restrição, desde que respeitem a soberania boliviana.
Já o caminho da solidariedade ativa entre dois povos indígenas, originários da Pachamama e da Palestina, ambos em luta contra cercos coloniais contemporâneos, precisará ser reafirmado e redefinido.
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