Com o olhar voltado às causas humanitárias, a fotógrafa Karine Garcêz desenvolveu projetos e campanhas sobre crianças em situação de refúgio pelo mundo. Visitou campos de refugiados em Gaza, Síria, Líbano e Turquia que resultou na publicação do livro “Infância Refugiada – Retratos de um Conflito”.
Segundo a Agência da ONU para Refugiados ( ACNUR), até o final de 2019, 79,5 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas, desse universo de pessoas, 5,6 milhões são palestinos, que desde 1948 são impedidos por Israel de retornarem à sua terra, Palestina.
Em entrevista ao Monitor do Oriente Médio, Garcêz relata como vivem as crianças palestinas em campos de refugiados, as dificuldades enfrentadas no cotidiano e também a perseverança e força de um povo que não se deixa embrutecer pela pobreza e injustiça que lhes são impostas.
Como surgiu o projeto de fotografar crianças em campos de refugiados?
O Projeto surgiu depois de ter percorrido os campos de refugiados na Turquia, Líbano e Síria, vivenciando a trágica situação das crianças nesses três locais em pleno inverno, associada à experiência anterior na Faixa de Gaza.
O que chega de informação para o ocidente é sempre de forma a explorar a dor da vida dos refugiados, mas não falam sobre as causas. Os refugiados são o efeito de políticas de guerras xenófobas no mundo. Com base nisso comecei a focar na situação das crianças.
E como vivem essas crianças?
Cada região é uma situação, de forma geral, bem complicada para as crianças. Falta saneamento básico, alimentação adequada. Na Síria, por exemplo, por conta do conflito, o acesso à educação e alimentação é interrompido. Na Turquia, dependendo da região, não há escola perto e para chegar à que existe, as crianças precisariam pegar ônibus, mas não tem dinheiro para isso, então, fica sem estudar. Existem estudos que comprovam que crianças que vivem em campos de refugiados tem 5 vezes menos chances de acessar a educação do que uma criança que vive na periferia de países pobres.
Como é a estrutura dos campos de refugiados?
Os campos de refugiados ficam em áreas periféricas, não estão dentro dos grandes centros, sofrem com a questão da violência, com a escassez de alimentos, água potável. Na Turquia, por exemplo, alugaram um hangar para abrigar os refugiados, eram várias tendas separando as famílias, mas foi preciso procurar outro lugar porque o aluguel começou a ficar muito caro. No Líbano, os campos de refugiados também são alugados, os campos palestinos que já estão há muito tempo lá, foram alugados por 99 anos. O contrato está para acabar e para onde vão essas pessoas que não tem o direito de retorno?
Em Gaza, tanto a população da cidade como dos campos de refugiados, sofrem muito por causa do bloqueio imposto por Israel. A questão humanitária é muito difícil e cada vez piora mais, a energia é escassa, água potável também, pois boa parte da água é contaminada por Israel, assim como o mar de Gaza que recebe dejetos e contaminação dos territórios ocupados. O acesso à saúde é dificultado pela falta de medicamentos, que depende da aprovação de Israel e Egito, que na grande maioria das vezes não deixa entrar em Gaza.
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Qual foi sua sensação de estar nesses campos?
É uma mistura de sentimentos, porque ao mesmo tempo em que me sentia feliz por estar ali com aquelas pessoas que me receberam tão bem e que me acolheram com muito amor, carinho e respeito, ao mesmo tempo, ver essas pessoas sendo tratadas e colocadas em condição desumana gerou em mim um sentimento de impotência. No entanto, acaba virando um combustível para a gente se engajar mais, por isso digo que é uma mistura de sentimentos, de alegria e tristeza.
Quais foram suas maiores dificuldades nos campos?
A maior dificuldade foi a comunicação por questão do idioma. O único lugar que tive outro tipo de dificuldade foi na Síria, onde o controle do exército sírio é rígido. Os soldados queriam saber a todo momento o que eu estava fotografando e até queriam direcionar onde eu poderia fotografar. Ali foi muito tenso.
Como foi o processo de criação do livro?
O livro foi pensado para levar às escolas a questão das crianças em situação de refúgio no mundo, em especial as crianças palestinas. Consegui fazer o livro através do governo do Estado do Ceará, por meio de um edital público. Em meu projeto, tracei um paralelo entre a situação das crianças em refúgio com a situação das crianças do nordeste, em especial do Ceará. Aqui, segundo o direito internacional, somos categorizados como refugiado ambiental, pois temos que nos deslocar por questões ambientais. Meu objetivo é mostrar esse paralelo, para aproximar as pessoas e entender a questão dos refugiados. Trazer à luz o fato de que a situação de refúgio não é um problema distante e sim um problema nosso. A ideia é que as crianças daqui se conectem com as crianças de lá.
Qual seu novo projeto?
“Ninho – Infância que Resiste” é um documentário que propõe conexão entre as crianças, para que elas possam dialogar entre si por meio da tecnologia, apresentarem suas culturas e experiências. Esse projeto visa aproximar duas realidades geograficamente distantes, porém muito próximas quando se fala sobre direitos básicos e realidades de vida. Estou com uma campanha na internet para arrecadar fundos para a realização desse projeto. InsAllah, conseguiremos.
Teaser do documentário “ Ninho – Infância que resiste”
Segundo dados recentes do Comitê Nacional para os refugiados (CONARE), o Brasil abriga cerca de 43 mil pessoas reconhecidas como refugiadas, qual sua análise sobre a situação deles no país?
A situação dos refugiados aqui no Brasil são bem diversas, existem os refugiados que conseguiram se estabelecer, construir suas vidas e tem os refugiados que não conseguiram, que estão sofrendo, principalmente agora no período da pandemia. Atualmente, o maior número de refugiados é de venezuelanos e dependendo da condição social, religiosa e étnica, terá facilidades ou terá mais dificuldades. Por exemplo, a população negra, tanto os haitianos, como pessoas que vem dos inúmeros países do continente africano, por serem negras, elas sofrem bastante preconceito e os negros que são muçulmanos sofrem preconceito ainda maior por conta da questão religiosa.
Existe uma crescente xenofobia no país e quando se trata de refugiados ou imigrantes é latente, seja no dia a dia ou quando precisa dos serviços públicos. O preconceito pode ser explícito ou velado. Importante ressaltar que essas pessoas que estão na condição de refugiados trazem consigo experiências de vida, conhecimento e em sua maioria tem gerado empregos aos brasileiros, impulsionando a economia.
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