Islamofobia e colonialismo em tempos de crise

Banner pendurado no muro do Centro Cultural Francês em Gaza, em protesto às declarações sobre o Islã do Presidente da França Emmanuel Macron, na Cidade de Gaza, 28 de outubro de 2020 [Ali Jadalah/Agência Anadolu]

No último dia 2 de outubro o presidente francês Emmanuel Macron fez um discurso no qual afirmou que o Islã é uma religião em crise no mundo todo. Se não bastasse essa postura arrogante, ele ainda se propôs a criar um Islã “iluminista” em oposição ao Islã radical vinculado a influências estrangeiras retrógradas.

Se o mesmo discurso fosse feito por um líder árabe e dirigido contra o cristianismo, não faltariam líderes ocidentais, além do papa, a condenar tal posição como contrária aos valores de tolerância e democracia. Mas como ele é feito por um líder ocidental contra o Islã, então ele é aceito pelo establishment dos países ocidentais.

As primeiras medidas são fechar ou colocar sob monitoramento centenas de mesquitas, escolas e centros muçulmanos além de impedir os clérigos muçulmanos de estudar fora do país.

Analistas políticos, em sua maioria, atribuem o discurso de Macron às futuras eleições nacionais nas quais Macron tenta “roubar” o eleitorado da Frente Nacional de Marine Le Pen, partido xenófobo da extrema direita parlamentar.

A este elemento correto, temos que agregar mais dois: a crise econômica e social, e o colonialismo.

A marginalização da população muçulmana

Hoje existem cerca de 5,7 milhões de cidadãos franceses que são muçulmanos (8,8% da população francesa). A ampla maioria são originários das ex-colônias francesas no Magreb, Oriente Médio e na África negra ocidental.

Em tempos de crise econômica, os muçulmanos franceses enfrentam índices de desemprego e de encarceramento muito acima da média nacional, além de se concentrarem nos bairros periféricos mais pobres.

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A crise econômica afeta toda a população trabalhadora. Nestes momentos, nunca faltam demagogos que vendem a ilusão de que o problema são os imigrantes, que “roubam” os empregos dos franceses e lhes rebaixa os salários. É o caso da Frente Nacional. Outros partidos de direita, como o de Macron, utilizam uma retórica mais “iluminista” de defesa dos valores da República Francesa para atingir o mesmo alvo: a população que imigrou das colonias, em particular os muçulmanos e os negros.

O objetivo dos partidos da ordem capitalista é impedir a unidade da classe trabalhadora e da população pobre para lutar contra que os capitalistas coloquem sobre os ombros dos oprimidos o peso da crise econômica.

Dos discursos xenófobos a medidas discriminatórias basta apenas um passo. Em 2004, o governo francês proibiu o uso do hijab nas escolas, alimentando a discriminação contra as famílias muçulmanas além de excluir muitas de suas filhas das escolas.

Essa marginalização econômica e social empurra a população muçulmana às ruas para protestar contra a discriminação, mas também para ações individuais desesperadas que só alimentam ainda mais o preconceito contra a própria comunidade muçulmana francesa.

Colonialismo

Outro fator importante é o colonialismo. O discurso intolerante contra os muçulmanos remonta aos tempos de Carlos Martel e Carlos Magno, líderes dos Francos no século VIII. Mas são as guerras da reconquista e as cruzadas (1096-1272) que uniram a violência militar e a islamofobia para a conquista de territórios e de rotas comerciais no mediterrâneo então sob controle de reinos muçulmanos.

Napoleão Bonaparte, por sua vez, utilizou uma forma mais sofisticada para promover a mesma dominação, um tipo de colonialismo iluminista. Em 1795 fundou a Escola de Línguas Orientais Vivas para formar estudiosos especializados no Oriente, os chamados orientalistas. Em 1798, ao invadir e tomar o Egito, levou cerca de 160 orientalistas para promover uma colonização disfarçada, que evitasse maiores resistências da população local. O manifesto distribuído ao povo egípcio continha promessas de respeitar a religião e cultura locais. Veja:

“Povo do Egito, lhes foi dito que viemos para destruir a sua religião. Isto é uma mentira. Não acreditem. Digam aos caluniadores que viemos aqui para restaurar seus direitos das mãos dos opressores e que eu, mais que os mamelucos (os governantes de então) sirvo a Deus e reverencio seu profeta Maomé e o glorioso Alcorão.”

As belas palavras deste manifesto não impediram Napoleão de impor sua ordem no Egito e na Palestina à base da violência.

Duzentos anos depois, nada mudou. No mesmo lugar, outro líder imperialista, Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, fez um discurso similar. Veja:

“É uma honra estar na eterna cidade do Cairo e ser recebido por duas instituições notáveis. Por mais de mil anos, Al-Azhar tem sido um bastião do ensino islâmico, e por mais de um século a Universidade do Cairo tem sido uma fonte de progresso no Egito. Juntas representam a harmonia entre a tradição e o progresso. Estou grato pela sua hospitalidade e a hospitalidade do povo egípcio. Tenho orgulho de trazer comigo a boa vontade do povo americano e uma mensagem de paz das comunidades muçulmanos do meu país: Assalaamu Alaykum (A paz esteja convosco)!” (discurso de Barack Obama no Cairo em 4 de junho de 2009).

Enquanto Obama discursava no Cairo, tropas americanas ocupavam o Iraque, o Afeganistão e atacavam o povo iemenita em uma demonstração que a paz prometida no discurso não tinha correspondência com a realidade.

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Edward Said, um dos mais importantes intelectuais palestinos que viveram no ocidente, em sua obra “Orientalismo” demonstrou como a cultura dos países colonialistas estava impregnada de preconceitos contra os povos do Oriente e que essa ideologia desumanizadora estava a serviço da conquista, da espoliação e da colonização dos povos do Oriente, de suas terras e riquezas.

Islamofobia

A islamofobia é a discriminação contra os povos de fé muçulmana que tem como objetivo sua dominação e colonização.

Os ideólogos colonialistas atribuem ao Islã características supostamente permanentes tais como a violência, a discriminação à mulher e a incompatibilidade com a democracia e a civilização.

Qualquer pessoa mais atenta vai perceber que, por exemplo, a colonização francesa na Argélia não tinha como objetivo a paz, a libertação da mulher ou a implantação da democracia. Ao contrário tratava-se de roubo das terras e riquezas dos árabes através do emprego da mais abjeta violência.

A islamofobia serve apenas para criar uma cortina de fumaça para a colonização.

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Cenário futuro

A recessão mundial, e o consequente aumento do desemprego e da carestia colocam na ordem do dia a eclosão de grandes lutas e revoluções sociais.

Já vimos os primeiros sinais nas lutas contra o racismo e a violência policial nos Estados Unidos, na retomada de revoluções no Chile, Iraque e Líbano, e nos protestos em Belarus, Colômbia, Indonésia e Tailândia.

As potências imperialistas e os regimes políticos aliados em cada país vão utilizar todas as suas  armas disponíveis para salvar o capitalismo e sua ordem mundial. Vão promover ilusões na “democracia”, alimentar o nacionalismo tóxico, propagar a islamofobia e, se não conseguir paralisar os levantes sociais, vão recorrer à repressão brutal.

A classe trabalhadora e os povos oprimidos tem que operar em outra perspectiva. Terão que combater todas as formas de opressão e exploração promovidas pelos imperialismos e associados, para lutar pelo poder em escala internacional. Esta é a única fórmula que vai eliminar para sempre a islamofobia e todas as formas de opressão que afligem a humanidade.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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