Em janeiro de 2017, o Índice de Democracia da Unidade de Inteligência da revista The Economist rebaixou o estado da democracia nos Estados Unidos de “pleno” a “falho”. A demoção de um país que constantemente orgulha-se de não apenas ser uma democracia, mas ser o exemplo da democracia em todo o mundo, tomou muitos de surpresa. Estudiosos americanos prontamente trataram de contestar as evidências.
Contudo, a julgar pelos eventos que decorreram desde então, a precisão do índice prevalece sobretudo na realidade cotidiana da política americana, incluindo na polarização cultural e extremismo político, influência exponencial de milícias armadas, violência policial, abusos de direitos fundamentais contra imigrantes não-documentados (incluindo crianças) e marginalização das minorias do país em relação à tomada de decisões.
O índice enfim expôs a deterioração contundente da democracia nos Estados Unidos, com base em 60 indicadores distintos, além das categorias tradicionais – por exemplo, função do governo –, como igualdade de gênero, liberdades civis e cultura política. Dada a quantidade, diversidade e profundidade destes indicadores tornou-se seguro assumir que os resultados das eleições presidenciais nos Estados Unidos não teriam efeito imediato ao estado da democracia americana. Ao contrário, o resultado provavelmente trará maior fragmentação em uma sociedade já dividida, ao preservar as instituições do estado – dentre as tais, a Suprema Corte – como campo de batalha entre coalizões políticas e ideológicas.
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O chavão promovido por ambas as principais campanhas eleitorais deste ano foi a ideia de “salvar a democracia”, cuja deterioração deve agravar-se, no futuro próximo. A crise deve-se à recusa das elites americanas, democratas ou republicanas, em reconhecer os verdadeiros males que afligem a cultura política dos Estados Unidos há anos e anos.
Infelizmente, quando o Senador Bernie Sanders, então candidato nas prévias democratas à presidência, insistiu na urgência de reformas estruturais massivas em todos os níveis de governo, foi descartado pelo establishment de seu partido como “não realista” e “inelegível”. Sanders estava certo, é claro, pois a crise na democracia americana não teve início com a vitória eleitoral de Donald Trump, em 2016. De fato, representou meramente um sintoma de um problema muito mais amplo e arraigado.
Questões cruciais dificilmente serão solucionadas sem a manutenção de esforços posteriores ao resultado das eleições presidenciais. Dessa forma, o estado da democracia na América continuará a cair. A desigualdade é um exemplo crítico dos grandes desafios à frente, por exemplo, no que refere-se à renda, fonte de diversas lutas sociopolíticas. O problema persiste ao menos há 50 anos. Agora, no entanto, aprofunda-se ainda mais pela pandemia de covid-19, ao afetar sobretudo certos grupos raciais – em particular, afro-americanos – e as mulheres, com muito maior severidade do que homens e brancos. Segundo estudo conduzido pelo Centro de Pesquisa Pew, em fevereiro de 2020, “a desigualdade de renda nos Estados Unidos é a maior em todas as nações do G7” e representa problema essencial para 78% dos democratas e 41% dos republicanos.
A polarização política é outra questão importante. A vasta distância entre os poucos ricos e os muitos pobres não é o único cisma que resulta em fraturas contundentes na sociedade americana. A polarização política, portanto, é um problema grave nos Estados Unidos, ao notoriamente não expressar a si mesma conforme demarcações racionais de classe.
Tanto republicanos, quanto democratas obtiveram êxito em recrutar apoio de certos grupos da sociedade americana. Porém, pouco ou nada fizeram para cumprir as inúmeras promessas feitas pelas elites políticas de ambos campos, habitualmente durante as campanhas eleitorais.
Por exemplo, republicanos utilizam um discurso político populista para coagir os trabalhadores brancos do país, ao prometer prosperidade econômica, entretanto, sem nenhuma evidência de melhora de vida da classe trabalhadora durante a gestão Trump. O mesmo vale aos democratas, que impuseram a si mesmos, de modo falacioso, como defensores da justiça racial e de um tratamento mais justo aos imigrantes.
A militarização da sociedade emerge ainda como fruto da desigualdade socioeconômica e da polarização política, em seu pior estado, resultado da crise de confiança sobre a própria democracia e sobre o papel do estado em consertar um sistema profundamente falho. A mesma falta de confiança em um governo central retoma, não obstante, aos primórdios dos Estados Unidos da América, sob a ênfase constante na Segunda Emenda da Constituição, referente ao “direito do povo de manter e portar armas.”
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É fato que a sociedade americana é uma das mais militarizadas do mundo. Segundo o Departamento Federal de Investigação dos Estados Unidos (FBI), dois terços de todo o terrorismo doméstico no país são executados por milícias de direita e extrema-direita, incitadas mais do que nunca pela atual conjuntura. Um relatório de outubro, divulgado pelo Centro de Direito da Pobreza do Sul, organização de advocacia com sede no Alabama, estimou que há hojé 180 grupos ativos paramilitares antigoverno nos Estados Unidos. Trata-se de um número chocante. Portanto, não é surpresa alguma saber que, pela primeira vez em muitos anos, a grande mídia aborda quase diariamente a hipótese de uma nova “Guerra Civil”.
Seria absolutamente ingênuo imaginar que a democracia nos Estados Unidos poderia se recuperar apenas como resultado de qualquer eleição; sobretudo, a última. Sem uma mudança fundamental na política americana, a fim de confrontar problemas estruturais, por trás da desigualdade e da polarização, o futuro carrega ainda a possibilidade de cada vez maior fragmentação e, quem sabe, maior violência.
As semanas e meses porvir serão críticos para determinar a direção futura de toda a sociedade americana e dos processos democráticos que supostamente servem à função de sustentá-la. Lamentavelmente, os indicadores atuais são muito pouco promissores.
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