Dado que Joe Biden é enfim declarado presidente eleito dos Estados Unidos, é evidente, contudo, que seu governo terá de abordar diversas questões complexas. Dentre elas, a crise do coronavírus e o colapso da economia, a promessa de unir o país e curar as fissuras raciais sistêmicas, expostas em 2020. De fato, há muito trabalho a fazer. Naturalmente, neste contexto, a política internacional não exerceu um papel significativo no processo eleitoral. Qualquer menção à Síria, por exemplo, foi breve e raramente acompanhada por comentários ou análises. Não obstante, Biden não pode ignorar a Síria em seu futuro governo e, considerando as ações passadas e a conjuntura atual, é justo refletir sobre como ele poderá tratar desta crise que já se aproxima de uma longa década de duração.
Uma mudança na presidência não necessariamente indica uma grande mudança na política internacional. Um dos melhores exemplos é a política dos Estados Unidos sobre a Palestina, pouco distinta entre democratas e republicanos, à medida que Congresso, Senado e agências de inteligência também exercem um papel sobre a questão, para além do executivo. Donald Trump foi possivelmente a única exceção à política supracitada, ao transferir a embaixada americana de Tel Aviv a Jerusalém, por exemplo, ou depreciar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O povo sírio vê os democratas americanos com compreensível suspeita, após a catástrofe da linha vermelha, em 2013, que sugeriu, de certo modo, que o então Presidente dos Estados Unidos Barack Obama relegou a questão síria à condução da Rússia.
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Os democratas efetivamente representam uma vasta coalizão na política dos Estados Unidos. Há centristas considerados “conservadores” em outros estados e figuras de esquerda, identificadas como “socialistas democratas”. Durante o mandato de Obama, segundo relatos, a então Secretária de Estado Hillary Clinton mostrou-se mais pró-intervenção do que o vice Joe Biden, que sentia certo desânimo e hesitação após a desastrosa invasão no Iraque. Além disso, sucessivas entrevistas com assessores de campanha e conselheiros de política externa deixaram bastante claro que Biden lamenta o modo como as coisas transcorreram na Síria, após 2016. Dessa forma, sua presidência poderia representar uma oportunidade de “redenção”. Com inúmeros obstáculos à frente, mesmo esta busca ainda é incerta.
O mandato de Trump pouco fez para ajudar a causa síria, além de gestos, em maioria, simbólicos. O republicano enxergava a Síria somente através do véu do contraterrorismo, isto é, quando ao menos considerava sua existência. Seu ataque aéreo conduzido em abril de 2017, em retaliação aos ataques químicos perpetrados pelo regime de Bashar al-Assad, mostrou-se efetivamente retórico. Trump sequer estava ciente dos ataques de Assad contra a região de Idlib até ouvir os relatos de um médico sírio que pagou pelo privilégio de sentar-se ao lado do presidente, durante um evento de arrecadação do Partido Republicano. O incidente demonstrou o quão fora da realidade estava Trump e expôs a impulsividade extrema de seu processo para tomar decisões. Se há alguma certeza, é que a longa carreira de Biden no Comitê de Relações Exteriores do Senado significa que ele devidamente compreende as nuances de diversas questões de política externa e de eventuais decisões de sua gestão sobre a pauta, sejam pré-planejadas ou meramente consideradas.
Os poucos comentários sobre política internacional durante as eleições envolveram a relação com a Rússia e o acordo nuclear iraniano. Sobre o primeiro tópico, ficou claro que Trump tinha algo a esconder, mesmo antes de ser eleito, conforme provou-se a interferência russa no processo eleitoral, em nome do então candidato republicano. Ao longo dos anos, Trump foi muito pouco expressivo em qualquer crítica pública ao Presidente da Rússia Vladimir Putin, incluindo no que se refere à Síria. Veto após veto, impostos pela Rússia no Conselho de Segurança da ONU, não encontrou qualquer resistência efetiva de Trump. Joe Biden, por outro lado, já prometeu uma postura mais firme para responsabilizar Putin por seus abusos, inclusive na Síria. Sobre o pacto nuclear com o Irã, Trump sempre reiterou sua oposição e decidiu revogá-lo unilateralmente. Biden comprometeu-se em trabalhar para reaver o acordo, desde que o Irã concorde em restituir seus termos. Entretanto, apesar dos benefícios de um acordo abrangente, capaz de assegurar que o imprevisível regime iraniano não obtenha armas nucleares, há uma preocupação bastante compreensível entre os sírios de que atenuar as sanções poderá permitir ao Irã que volte a investir e intervir a favor de Assad. Qualquer revisão do acordo nuclear iraniano teria de incluir algum tipo de garantia contra prováveis intervenções do Irã sobre a Síria.
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As tarefas de Biden, a começar em 20 de janeiro, se acumulam rapidamente. Decerto, o novo presidente deverá manter-se ocupado com questões domésticas e com a restauração de alianças internacionais, desde o primeiro momento. Será surpreendente, no entanto, se não houver qualquer menção ou iniciativa política à Síria nos primeiros cem dias de seu governo. O povo sírio detém a sensação de que a comunidade internacional o abandonou há muito tempo. Biden tem a oportunidade de estender um ramo de oliveira, em sinal de apoio, e deixar claro que o regime sírio será de fato responsabilizado por seus crimes, além de evitar que Assad se imponha a qualquer eleição futura, dado que há sangue de civis em suas mãos.
Milhões de refugiados sírios não retornarão às suas casas para reconstruir o país antes que haja qualquer mudança política concreta. Consideram a conferência realizada em Damasco, na última semana, com apoio da Rússia, a fim de planejar seu retorno, como uma enorme piada.
Histórias chocantes ainda são publicadas sobre a situação na Síria. Mostram que o povo essencialmente vive em uma prisão a céu aberto. Os sírios que fugiram da brutalidade do regime de Assad não estão prontos para retornar, ao menos antes que seja deposto. O reino de Assad não pode continuar.
Biden será capaz de abordar essa questão?
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