“Espero que esse amor que sinto pelo futebol nunca acabe e que essa festa nunca acabe, que o amor que eles têm por mim nunca acabe. (…) Eu errei e paguei, mas a bola não se mancha.” Com essas palavras, Diego Armando Maradona selava despedida memorável como jogador, em 10 de novembro de 2001. Era uma partida em sua homenagem, da Argentina contra um combinado do resto do mundo, no estádio La Bombonera, de seu time do coração – Boca Juniors. O discurso emocionado, após emplacar dois gols durante o pouco tempo de participação, foi interrompido nesse momento pelo auditório lotado. Muitos aplausos e ovação. Como merecia.
Neste 25 de novembro, o polêmico, rebelde, monumental Maradona – que conheceu o céu e o inferno na terra – fez o mundo chorar. “Crescendo em Gaza, nós amamos Maradona. Na verdade, pessoalmente eu o amava e jogava futebol por causa dele. Sempre que ele jogava, fosse pela Argentina, pelo Nápoli ou por outros times, largávamos tudo e nos reuníamos em frente à nossa pequena televisão em preto e branco para vê-lo”, destacou o jornalista palestino Ramzy Baroud ao portal The Palestine Chronicle.
Para além da genialidade com a bola, que inspira crianças nas periferias e campos de refugiados mundo afora, palestinos – e muitos outros – derramaram suas lágrimas também porque ele fazia com que se sentissem menos órfãos de uma solidariedade internacional urgente.
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Maradona simbolizava o sentimento combinado dos palestinos, em que tudo – até mesmo jogar futebol – é resistência. E flertou com isso, ao se mostrar disposto a visitar a seleção palestina. Houve até quem especulasse que comandaria o time, classificado pela primeira vez para a Copa da Ásia de 2015, o que não se confirmou.
Um de nós
As declarações de Maradona ao mundo davam visibilidade à terrível situação sob colonização, ocupação e apartheid israelenses. Maradona, o ídolo visto por garotos pobres na América Latina como “um de nós” – por sentirem-se representados por um igual que chegou lá -, também assim o era pelos palestinos.
“Maradona inspirou algo em nós como um coletivo – um homem de constituição pequena, de uma origem terrivelmente pobre, moreno como nós, ardente como nós e apaixonado como nós, abrindo seu caminho até o topo do mundo”, declarou ao portal The Palestine Chronicle o jornalista palestino Ramzy Baroud, para quem o jogador despertava esperança.
Foram muitas declarações nesse sentido. Segundo o portal Palestina Libre, em 2012, o jogador argentino disse que visitar a Palestina seria como se seu neto Benjamin lhe desse um beijo. Um lirismo na solidariedade que lembra a descrição de refugiados palestinos sobre o amor por sua terra. “Em meu coração, sou palestino”, incorporava esse sentimento, em julho de 2018, o gênio do futebol. Anos antes, disse também àqueles com quem se irmanava: “Sou seu fã número um.”
Sua rebeldia associava-se, assim, de forma definitiva à heroica resistência palestina. Resistência que se faz em todos os campos, inclusive no futebol. Sob ocupação, o primeiro drible necessário é no apartheid, para se chegar a um campinho e disputar uma partida. Na Cisjordânia, são inúmeros checkpoints e um muro gigantesco que atravessam a realização do sonho de chutar a bola profissionalmente – ou simplesmente ter um breve momento de diversão em meio a uma realidade que não dá trégua. A realidade da colonização, da limpeza étnica contínua há mais de 72 anos (desde a Nakba, a catástrofe com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948). Da falta de direitos humanos fundamentais.
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Tudo isso perante um mundo que – acreditam – os esqueceu, tamanha a cumplicidade e silêncio, rompidos internacionalmente em geral pelos oprimidos e explorados. Por aqueles que sentem na pele as consequências das tecnologias militares israelenses testadas sobre as “cobaias” palestinas: pobres, negros e indígenas, sobre os quais são despejadas balas sionistas compradas por seus governos.
Nesse sentido, em 2014, o sangue palestino serviu como importante show room. O massacre israelense em Gaza – cotidiano, seja a conta-gotas ou numa enxurrada – durou naquele fatídico ano 51 dias, culminando ao final em 2.200 palestinos assassinados pelas bombas lançadas por drones vendidos aos tais governos mundiais – entre os quais 530 crianças. Maradona ecoou as vozes que denunciavam mais esse crime sionista contra a humanidade: “O que Israel está fazendo aos palestinos é vergonhoso.”
E não tinha dúvidas: “Eu apoio a Palestina, sem medo.” Não chegou a se pronunciar pelo BDS (boicote, desinvestimento e sanções) a Israel, mas jamais declarou oposição ou agiu contra o movimento. E deixou lição a ser seguida, lembrada num chamado às seleções do Uruguai e da Argentina a que não se apresentassem ao apartheid israelense em 2019: “A bola não se mancha.”
Se faltou o apoio à campanha com a ênfase característica na solidariedade aos palestinos, fato é que suas declarações lhe garantem também entre esses o panteão reservado a imortais – para além daquele que já lhe está sacramentado, o do futebol.
Maradona, presente, hoje e sempre, no coração dos palestinos. Obrigada. Shukran.
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