O que está acontecendo na França? É uma questão razoável que preocupa até autoridades internacionais, inclusive a ONU, até porque especialistas independentes em direitos humanos da ONU declararam que um polêmico projeto de lei francês sobre segurança global é incompatível com o direito internacional de direitos humanos. As imagens da brutalidade policial levantaram protestos públicos. O Coletivo Contra a Islamofobia na França (CCIF) e uma ONG muçulmana, Baraka City, foram dissolvidos durante uma sessão do Conselho de Estado francês.
Em sua defesa, o governo afirma estar defendendo “valores republicanos” em um país ainda traumatizado por diversos atentados terroristas e pela abominável decapitação de um professor, Samuel Paty, em outubro. No entanto, a defesa da república e dos seus valores virou o pretexto para uma reação política que mina precisamente estes mesmos valores e esta mesma república? A França está caminhando para seu próprio Kulturkampf (termo alemão para guerra cultural Estado vs religião)?
A desdemocratização é definida pelo filósofo Etienne Balibar como “a ascensão de mecanismos autoritários e de segurança, a perda de legitimidade e representatividade das instituições parlamentares e o deslocamento dos centros de poder real para além do alcance do controle e da iniciativa dos cidadãos. ” Este processo é levado a cabo pelas autoridades francesas que, em nome da “luta contra o extremismo” – ou dos seus avatares semânticos “islamismo”, “separatismo”, “comunitarismo” – e de “defesa dos valores da república”, desenvolvem um argumento que é precisamente contrário a esses ideais.
A próxima legislação claramente ganhou impulso, como o projeto de lei “contra o separatismo”. A lei de 1905 sobre o secularismo estabeleceu o princípio da “neutralidade” dos serviços públicos e, portanto, de seus agentes, em questões religiosas. O objetivo era proteger o Estado contra qualquer intrusão da onipotente Igreja Católica. De acordo com o projeto de lei sobre o “separatismo”, este princípio de neutralidade será oficialmente estendido às empresas que delegam serviços públicos, como o grupo estatal de transporte público regional RATP, a multinacional de eletricidade EDF, os aeroportos de Paris e a SNCF, a estatal companhia ferroviária nacional.
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Como não questionar esta estranha inversão do secularismo, que faria com que o princípio em si não fosse a neutralidade do Estado em questões religiosas, mas a neutralidade religiosa dos cidadãos que vivem no mesmo Estado? Esta é a asseptização religiosa deste mesmo espaço e uma negação da dimensão emancipatória do princípio do laicismo, tanto quanto do seu espírito de convivência e coesão pacíficas. Tal inversão faria do Estado o árbitro e o juiz do grau de religiosidade aceitável ou não em seu espaço público. É um paradoxo secular.
Além disso, e quanto à lei de associações de 1901? Durante seu discurso contra o “separatismo” em 2 de outubro, Emmanuel Macron declarou: “As associações devem se unir e não fragmentar a nação.” A torneira do dinheiro pode ser desligada, pois os subsídios públicos estarão condicionados à assinatura de uma “carta do laicismo” que os beneficiários se comprometerão a cumprir, ainda que a ideia de defender “os valores da república” permaneça um conceito vago. Cabe agora ao governo interferir na vida das associações, sob o risco de disputar essa liberdade que continua sendo o alicerce da sociedade civil? A liberdade de associação não é precisamente um desses “valores” republicanos?
O “novo esquema nacional de policiamento” é intrigante, no mínimo. Agora afirma que “o crime de permanecer na multidão após ser intimado não inclui exceções, inclusive para jornalistas ou membros de associações”. Este projeto de lei, destinado a policiais, já foi contestado por muitos jornalistas que estão preocupados com sua liberdade de cobrir manifestações. A liberdade de imprensa, o direito de informar e a liberdade de manifestação estão, simplesmente, comprometidos.
O “novo esquema nacional de policiamento” é intrigante, no mínimo. Agora afirma que “o crime de permanecer na multidão após ser intimado a sair não prevê exceções, inclusive para jornalistas ou membros de associações”. Este projeto de lei, destinado a policiais, já foi contestado por muitos jornalistas que estão preocupados com sua liberdade de cobrir manifestações. A liberdade de imprensa, o direito de informar e a liberdade de manifestação estão, simplesmente, comprometidos.
A lei sobre segurança global também foi uma grande preocupação para as organizações da sociedade civil e funcionários. No artigo 21, pretende desregulamentar o uso de câmeras corporais policiais; o artigo 22 quer legalizar a vigilância de drones e o artigo 24 quer proibir o público de compartilhar imagens de policiais no domínio público.
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O artigo 21, de fato, permitirá o uso de câmeras acopladas ao corpo do policial com a possibilidade de “transmissão em tempo real ao posto de comando”. Isso obviamente levanta a questão da análise em tempo real de imagens por software de reconhecimento facial. Tornaria mais fácil manter um registro dos manifestantes, que poderiam ser impedidos de comparecer a outras manifestações.
Essas medidas ameaçam diretamente a liberdade de manifestar-se, de se reunir e de se locomover, bem como os direitos à segurança, proteção e integridade física. Com o uso de UAVs, há uma visão sobre gerenciamento e engenharia humana sendo promovida, o que anteriormente seria chamado de métodos de contra-insurgência, tecnologia “drone” e logística avançada.
As universidades também são visadas. O ministro da Educação, Jean-Michel Blanquer, falou sobre o “islamo-esquerdismo” que estava “minando a estabilidade das universidades francesas” e cujos seguidores seriam “os cúmplices intelectuais do terrorismo”.
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É necessário estabelecer um vínculo entre essas normas oficiais e a lei do programa de pesquisas para a qual o Senado acaba de aprovar uma emenda – “As liberdades acadêmicas são exercidas dentro do respeito aos valores da república … em primeiro lugar, o laicismo” – no seu primeiro artigo? Isso seria um golpe para a liberdade acadêmica em relação à pesquisa, ensino e ao que é expresso sem sofrer pressão ou ameaças a acadêmicos, professores e alunos.
Esta reação republicana pretende se opor ao comunitarismo por meio do “universalismo”. Esse universalismo, entretanto, às vezes pode ser entendido como um mero particularismo bem-sucedido. Para os muçulmanos da França, por ocasião de uma reconquista republicana, o futuro será um neo-marranismo (conversão à força ao cristianismo que judeus sofreram na Espanha e Portugal) republicano, que obrigará os muçulmanos a apagar de si mesmo os mais tênues vestígios de prática religiosa? Estamos vendo um “republicano-macarthismo”, cunhado pelo cientista político Jean-François Bayart, que enfatiza que, “quer queiramos ou não, o Estado francês é de fato islamofóbico”.
Em um clima em que o Estado reivindica a defesa do laicismo, transformando a neutralidade religiosa do Estado na neutralidade do espaço público, senão dos indivíduos nesse mesmo espaço público; e condenando todo “comunitarismo”, mantendo uma visão comunitária dos indivíduos, com os muçulmanos na França sendo convocados em cada ataque para condenar de forma comunitária atos que condenam como cidadãos individuais; em tal clima, por que essa reação republicana aproveitou a palavra “Islã” para transformá-la em um aríete contra todos os valores que afirma defender?
Com base na primazia do secularismo e da indivisibilidade, o surgimento do fundamentalismo secularista e republicano não seria ainda mais perigoso, por negar a realidade da presença dos muçulmanos na França, sejam eles franceses ou não? Na realidade sociológica, o muçulmano é também aquele que cuida, ensina, lidera, aconselha, dá expertise, trabalha e geralmente ajuda a construir a sociedade. Sob o pretexto de lutar contra vários “ismos” – islamismo, radicalismo, separatismo, comunitarismo – esses conservadores republicanos criam cismas que afirmam querer evitar.
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A França passou por uma crise social e de saúde, bem como de terrorismo. Além disso, uma eleição está se aproximando e os debates já estão se cristalizando em torno do Islã. Por que exatamente em torno de uma religião? Provavelmente porque é menos sobre o Islã em si, mas sobre o que a sociedade francesa luta para enfrentar dentro de si mesma.
Para começar, existe a noção fundamental de igualdade, entre homens e mulheres, por exemplo. Na França, as disparidades salariais entre homens e mulheres permanecem em torno de 30% e uma mulher é morta pelo marido ou namorado, em média, a cada três dias. No entanto, o Islã é usado como uma cortina de fumaça conveniente para que a sociedade francesa não veja a realidade de suas próprias desigualdades. O “Islã” e os muçulmanos são acusados de defender uma inferioridade das mulheres. O Islã também serve ao propósito de permitir que os franceses evitem fazer perguntas sobre a igualdade de fato entre cidadãos “franceses nativos” e aqueles com pais imigrantes. Mesmo que a lei francesa proíba a coleta de quaisquer estatísticas sobre etnia, é um fato que o acesso ao emprego, educação e moradia varia de acordo com o sobrenome e a origem étnica dos indivíduos.
Recorrer à polícia também é problemático. De acordo com um estudo oficial, um indivíduo percebido como negro ou árabe tem 20 vezes mais chances de ser parado e revistado pela polícia do que qualquer outro cidadão francês. Uma desigualdade estrutural que a sociedade francesa tem dificuldade em ver e admitir é, portanto, facilmente descartada sob o termo “problema muçulmano”.
Outro aspecto que a França (ou seus líderes) acha difícil de enfrentar é a ligação entre a constituição da república e o colonialismo. A irrupção na arena pública dos descendentes de imigrantes, muitas vezes vindos de ex-colônias, perturba a psique francesa e suas ficções nacionais tranquilizadoras. Afinal, dito e feito, é claramente possível ser um republicano sem se comportar como um democrata enquanto a França ruma para seu próprio Kulturkampf.
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