Esta quinta-feira, 10 de dezembro, marca o Dia Internacional dos Direitos Humanos. A data lembra os 72 anos da proclamação pela Assembleia Geral das Nações Unidas da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em seu artigo 1º., tal anuncia: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.[…].” Do Brasil à Palestina, nada mais distante da realidade.
Alguns fatos que antecedem este 10 de dezembro são exemplares: pelo menos quatro crianças palestinas foram gravemente feridas na Cisjordânia pelas forças da ocupação em fins de novembro último. E no último dia 8 um militar sionista que atingiu o olho esquerdo do menino Malik, de nove anos, cegando-o de uma vista, foi inocentado por Israel. No Brasil, a impunidade também é regra, como mostra o caso da vereadora Marielle Franco, cujo assassinato completou nesta semana mil dias, sem que a justiça seja feita. E o aumento das operações policiais no Rio de Janeiro tem ampliado o genocídio de pobres e negros. Na sexta-feira, dia 4, duas meninas – Rebeca, de sete anos, e Emily, de quatro – foram as novas vítimas, na Baixada Fluminense, no estado.
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Para além da violência policial, inclusive com armas israelenses, a lista de violações é interminável. Encarceramento em massa, extermínio de indígenas, falta de renda, moradia digna e água aos pobres até para lavar as mãos em meio à pandemia constam desse indignante rol no Brasil. Na Palestina ocupada, tortura em prisões políticas por Israel, inclusive de crianças e mulheres, bombardeios frequentes em Gaza, demolição de casas e expulsões, leis racistas, impedimento do retorno aos refugiados, sob o signo de nenhum direito humano fundamental garantido em meio a regime institucionalizado de apartheid.
Carta de intenções
A declaração que afirma o contrário, nessa direção, não passa de uma carta de intenções. Sem minimizar sua importância, uma das ponderações é que ao considerar igualdade e liberdade inatas aos seres humanos, aponta para o plano individual, ignorando as diferenças inerentes aos sistemas capitalista e imperialista. Outra mostra disso é quando fala sobre o direito “de propriedade”.
Sua suposta universalidade é questionada por críticos, segundo os quais é ainda preciso descolonizar a lógica dos direitos humanos. Caso contrário, tal bandeira seguirá a ser usada pelos poderes hegemônicos para subjugar os povos, e não o contrário. É o que se viu, por exemplo, nas invasões estadunidenses do Iraque, em 2003, e do Afeganistão, em 2001, em que um argumento era levar democracia e direitos humanos àqueles locais. Como pano de fundo, o viés liberal e a representação orientalista de um “Ocidente” civilizado ante um “Oriente” bárbaro, inventado.
Vale lembrar ainda que, na esteira dos horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada no mesmo ano da Nakba – a catástrofe palestina com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada, cuja responsabilidade da ONU é inegável. Foi ela que deu o sinal verde para a expulsão violenta dos 800 mil palestinos de suas terras e destruição de mais de 500 vilarejos, ao recomendar em 29 de novembro de 1947 a partilha da Palestina em um estado judeu e um árabe, sem consulta aos habitantes nativos. Naquele ano, enquanto dava seu aval ao projeto colonial sionista, em assembleia presidida pelo diplomata Osvaldo Aranha e com voto do Brasil, a ONU ironicamente começava a delinear a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que reúne 30 artigos.
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Segundo artigo de Rania Muhareb publicado há dois anos no site da Al Haq, organização palestina de direitos humanos, alguns tópicos foram incluídos nesse ínterim em função do enorme contingente de refugiados palestinos. A autora escreve que além de afirmar seu direito de retorno – ratificado um dia depois, em 11 de dezembro de 1948, na Resolução 194 da mesma ONU –, “a Declaração Universal estabelece ainda a proibição da discriminação (artigo 2), inclusive em territórios sob ‘limitação de soberania’, como território ocupado”.
Conforme lembra ela, os pactos que a complementam exigem “que os estados partes respeitem, protejam e cumpram os direitos culturais, civis, econômicos, políticos e sociais de todos em seu território ou sujeitos a sua jurisdição, incluindo em território ocupado. Ambos os pactos foram ratificados por Israel, como potência ocupante, e são, portanto, aplicáveis à população palestina na Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza, bem como em Israel”. Mas na prática, como um estado “fora da lei”, que prima pelo não cumprimento do direito internacional – cuja Declaração Universal é fundante –, nada disso é assegurado aos palestinos. Não daria para esperar nada diferente de um projeto colonial.
Essa impunidade lhe dá o aval para seguir com seus crimes contra a humanidade, inclusive associando-se ao que há de pior no mundo. Foi assim com as ditaduras no Brasil e na América Latina como um todo, que Israel saudou e com as quais colaborou no treinamento militar e armas. Foi assim igualmente com o apartheid sul-africano, cujo boicote internacional que ajudou a pôr fim a esse regime agora inspira a campanha central de solidariedade internacional aos palestinos. É assim na aliança prioritária com o Governo Bolsonaro e na contribuição de Israel ao genocídio pobre e negro nas periferias brasileiras, ao vender suas tecnologias testadas sobre as cobaias humanas que converte os palestinos todos os dias. O sangue dos brasileiros sustenta a ocupação. E vice-versa.
Direitos humanos de fato, para os oprimidos e explorados, ainda é algo a ser arrancado em suas lutas, para além da carta de intenções. Que a resistência heroica e histórica palestina siga a inspirar e iluminar esse caminho.
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