Em 21 de setembro de 2020, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, anunciou o acordo bilateral com o presidente de Honduras, o igualmente controverso Juan Orlando Hernández (que atende pela sigla de JOH). O Estado colonial do Apartheid israelense não tem representação diplomática oficial no país centro-americano desde 1994 e, assim, se comprometia a abrir uma sede oficial em Tegucigalpa. De sua parte, o mandatário latino-americano se comprometeria a transferir a embaixada de Tel Aviv a Jerusalém, seguindo os passos de Guatemala e EUA na violação do direito internacional. Hernández foi mais precavido, colocando a medida segundo o avanço e o combate da pandemia do coronavírus, cujos efeitos em Israel são muito avançados. Até o momento de conclusão deste artigo, a diplomacia hondurenha no país inventado pelo Mandato Britânico e a Agência Colonial seguia em Tel Aviv.
Além da violação dos direitos humanos, Honduras e Israel podem ter em comum a muito duvidosa conduta de ambos os chefes de Estado, com fortes suspeitas de corrupção e um comportamento nada republicano. Infelizmente, o heroico povo hondurenho vem lutando desde 28 de junho de 2009 contra um regime de facto, inaugurado com o golpe de Estado contra o então presidente eleito, José Manuel Zelaya Rosales. Nessa data, o alto comando das Forças Armadas executa uma ordem dada pela Suprema Corte de Justiça de Honduras, destituindo do poder o chefe de Estado legítimo, alegando uma suposta violação da Constituição de 1982, justamente a Carta Magna de saída de ditadura. Na década de 1980, o país era ocupado por forças especiais de Reagan, sede da contrarrevolução nicaraguense e epicentro do narcotráfico. Tal como a Constituição chilena de 1980, redigida pelos juristas protofascistas apoiadores da ditadura de Pinochet, o texto hondurenho assegurava um arranjo em que a cidadania não poderia mexer no texto, nem sequer a partir de plebiscito.
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Rosales chega ao poder como um clássico oligarca do bipartidarismo de Honduras, sendo eleito pelo Partido Liberal de Honduras (PLH, da tradição do liberalismo do século XIX, então laico e republicano). A força política rival é o Partido Nacional de Honduras (PNH, de matriz conservadora e, no século XIX, católica, na atualidade, com ampla aliança com pentecostais). A motivação do golpe de Estado foi a tentativa do governo de criar mecanismos de consulta direta, além de sua sadia aproximação com a Aliança Bolivariana (ALBA), então liderada pelo presidente venezuelano Hugo Chávez. A resposta ao golpe foi uma greve geral prolongada, desobediência civil contra o vice golpista (Roberto Micheletti) e a sensação de que o governo Obama, com Hillary Clinton na secretaria de Estado, começaria a aplicar golpes jurídico-políticos, tal como ocorrido no Paraguai em 2012 e no Brasil em2016.
Desde então, Honduras vive um dilema típico de países sob regime de exceção. Há uma continuidade eleitoral do mesmo partido, o PNH, que perdeu nas urnas para Zelaya, ganhou em 2010 com Porfirio Lobo, que concorreu praticamente sozinho (já que uma parcela da oposição estava proibida de disputar o pleito) e, ainda, garantiu o sucessor, o mais que suspeito Juan Orlando Hernández. Justiça seja feita, esse modelo de ditadura constitucional ou “democradura” já havia sido instalado na Argentina após a famigerada “revolução libertadora” quando, em setembro de 1955, uma conspiração de militares golpistas bombardeou a Casa Rosada (sede do governo argentino), obrigou o presidente Juan Domingo Perón a partir para o exílio e, na sequência, os generais Lonardi e Aramburu se dedicaram a fuzilar líderes peronistas antes de abrir o processo eleitoral seguinte, com o Justicialismo proibido de concorrer. Tal como no Chile, quando em abril de 1991 o senador pela UDI (extrema-direita) e coautor da constituição do tirano Pinochet foi justiçado por um comando da Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR), o mesmo destino teve Aramburu. Em junho de 1970 outro comando, desta vez da organização político-militar Montoneros, levou o mandante de centenas de fuzilamento à justiça histórica. Como se pode observar, há “luta justa” tanto na América Latina como no Grande Oriente Médio.
Voltando ao caso hondurenho, Porfírio Lobo garantiu o sucessor JOH, que modificou a constituição do país impondo a reeleição, dessa vez com aval da mesma Suprema Corte e dos generais formados na Escola das Américas (o centro de contra insurgência que os EUA mantiveram primeiro no Panamá, depois trasladados a Fort Bening, estado da Georgia, com o cínico nome de Instituto Hemisférico para Cooperação Segurança. É “curiosa” a posição dos Estados Unidos e da própria Organização dos Estados Americanos (OEA). Quando do golpe contra Zelaya Rosales, a Casa Branca manteve certa distância, deixando o chamado deep state se mover à vontade. A OEA, à época, surpreendentemente se portou bem, condenando a deposição do presidente eleito e a repressão contra a sociedade civil. No período seguinte, nada foi feito.
Juan Orlando Hernández foi eleito e depois reeleito em situação de fraude explícita. Não bastasse mudar as regras do jogo com a partida em andamento, JOH concorreu contra o engenheiro hondurenho de origem árabe-libanesa, Salvador Nasralla. Esse último formou a coalizão com LIBRES e PINU, sendo indicado político de Zelaya Rosales. Hernández estava perdendo na contagem de votos quando houve um mais que suspeito apagão elétrico no país (a contagem de votos é manual e as cédulas em papel), levando ao Tribunal Supremo Eleitoral de Honduras (TSE) a suspender o anúncio do vencedor. Passados 17 dias, a corte eleitoral dominada por partidários de JOH e apoiadores do golpe de 2009 reconheceu a vitória da situação, convertendo Honduras em uma autêntica ditadura civil.
Desde o período de Porfirio Lobo, Honduras vem sendo o laboratório latino-americano para privatizações, terceirizações e “estranhas” operações de segurança e economia política do crime. Em agosto de 2016, Hernández e Netanyahu anunciaram um acordo de cooperação em temas de securitários com Israel, sendo que antes, em 2014, o governo de Tegucigalpa comprou três aviões radares, que poderiam ser usados para abater aeronaves suspeitas de narcotráfico. Pelo visto, o propósito seria outro.
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Juan Antonio “Tony” Hernández, ex-deputado pelo PNH, irmão do presidente, era o encarregado de uma joint-venture comandada pelo Cartel de Sinaloa (secundada pelos Cavaleiros Templários, ambos mexicanos, e o Cartel dos Chang, esse último guatemalteco) para operar em Honduras, e terceirizou seções inteiras das forças armadas do país (treinadas pelos EUA), entre os anos de 2004 e 2016. Preso em Miami em novembro de 2018, foi condenado pelo Tribunal Federal do Distrito Sul de Nova York por narcotráfico, em outubro de 2019, ainda recorrendo da sentença final. Pelo visto, os radares remotos israelenses podem ter servido para ajudar os traficantes encastelados em posições de poder, cujo governo do irmão do capo hondurenho é apoiado por Trump e Netanyahu.
Obviamente, Juan Orlando Hernández nega veementemente todo e qualquer vínculo de seu governo com as atividades do irmão, que era congressista, aliado de Alexander Ardón (ex-prefeito de El Paraíso, na fronteira com a Guatemala) e teria confessado o financiamento da campanha de JOH com fundos advindos diretamente de Joaquín “El Chapo” Guzmán Loeira, líder do Cartel de Sinaloa. Deve ser tudo “coincidência” mesmo, tal como o fato de que o gabinete de Netanyahu se aproximou de tudo o que há de pior na América Latina, apoiando ou secundando as operações mais execráveis do imperialismo dos Estados Unidos em nosso Continente.
A sociedade hondurenha jamais se rendeu e seguirá percorrendo no século XXI os mesmos caminhos da odisseia do cacique Lempira, líder originário, cujas forças jamais se entregaram aos invasores cruzados.
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