A gravidade da situação das lutas por libertação nacional na Palestina e no Saara Ocidental é cada vez mais nítida. Embora ilegítimo, tem consequências o respaldo de Donald Trump à anexação dos territórios por Israel e pelo Marrocos. Os próximos meses dirão o que isso significará para duas das questões mais proteladas no cenário internacional e que podem se ver numa reviravolta.
Como se tem afirmado, é patente a ilegitimidade da anexação de territórios por meio da força nestes tempos modernos, mas Trump assim escancarou a visão dos Estados Unidos para a Palestina o Saara Ocidental: aliança incondicional a Israel ou dano colateral, moeda de troca num acordo mais amplo com o próprio. Entregando territórios aos ocupantes como se fossem seus, Trump já não surpreende, mas continua indignando. Mesmo considerando-o quiçá desprezível de tão espúrio, líderes de diversos países e a Organização das Nações Unidas (ONU) se viram obrigados a contrapor o seu pavoneio, afirmando que duas das mais retumbantes ações de Trump não alteram o status daquelas questões penduradas na agenda da ONU há cerca de sete e seis décadas —a da Palestina ao menos desde 1947 e a do Saara Ocidental, de 1963.
Entretanto, após tantos anos de um chamado “status quo” que só serviu para enraizar a colonização à base de sistemáticas violações dos direitos humanos para tentar controlar populações insubmissas, parece que só mesmo as medidas de Trump é que causaram ondas nas tranquilas águas da negligência. As supostas “calma e estabilidade” a que líderes internacionais apelam resplandeciam em suas retóricas, mas custam a opressão de palestinos e saarauís e o silenciamento ou a deslegitimação da sua resistência, enquanto se postergam respostas às justas demandas por libertação nacional. Estados Unidos e União Europeia, paladinos de uma legalidade instrumental —que só pode cumprir os seus projetos ou ser convenientemente relativizada, não se incomodaram em relevar as violações cometidas por seus aliados, contentando-se com apelos por contenção e soluções negociadas que acobertam posições menos nobres.
A delonga da ocupação e colonização da Palestina e do Saara Ocidental é um retumbante tormento no 60º aniversário da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais, que abriu um novo capítulo na consolidação do direito à autodeterminação graças às lutas anticoloniais por emancipação nacional. Além disso, ainda que alguns façam malabarismo jurídico para afirmar que a “ocupação beligerante” tem base no direito internacional humanitário e, por isso, não é propriamente ilegal —desde que “temporária”, mas sem prazo estabelecido, e por “necessidade” militar, tampouco definida— é evidente que a ocupação da Palestina por Israel e a do Saara Ocidental pelo Marrocos têm intenção colonial, o que as torna, para estes efeitos, ilegais, além de sempre imorais. Mas Israel e Marrocos tiveram relativa liberdade ou até incentivo, direto ou indireto —por exemplo, através da comercialização de produtos e equipamentos militares com Israel, inclusive os oriundos de colônias na Palestina, e de recursos explorados pelo Marrocos no Saara Ocidental, o que em si é uma violação do mesmo direito internacional humanitário que regula a conduta em conflitos armados. Entretanto, estas não são questões formais ou jurídicas, pelo que a defesa dos direitos de palestinos e saarauís deve se dar mesmo no campo político.
Barganhas coloniais
Com o Marrocos, Trump selou o quarto acerto entre um país árabe e Israel pela “normalização de relações diplomáticas” através dos chamados “Acordos de Abraão” que, é preciso ressaltar, reforçam a tergiversada narrativa religiosa sobre o conflito entre Israel, com seu projeto colonial, expansionista e ofensivo, e os seus vizinhos. A Declaração sobre os acordos não passa de cínica afirmação dos direitos dos povos da região à paz, à tolerância e à segurança, despolitizando como religiosa e identitária uma questão eminentemente geopolítica, instrumental para o imperialismo estadunidense e cuja principal sina é a avassaladora opressão dos palestinos pelo sionismo israelense. Uma tática conhecida e rota.
Na última barganha, adicionando injúria ao insulto, em troca da adesão do Marrocos à charada anti-palestina Trump ofereceu o reconhecimento da soberania marroquina sobre o Saara Ocidental, que quase nenhum país reconhece —certamente não a ONU, que desde 1963 o considera um território não-autônomo pendente de descolonização. Ao menos duas características do método Trump se impõem: o potencial explosivo da sua ação, em total desprezo pela paz que alega promover, embora esteja claro que a sua é uma “paz” da rendição; e a abordagem de transação comercial que o magnata adota em negociações diplomáticas de peso numa região como o Oriente Médio, onde a política imperialista estadunidense é em geral perniciosa.
Mas mesmo sendo mais aguda a atuação do cessante, há certa continuidade na política externa dos EUA —de Democratas a Republicanos a Democratas— e o presidente eleito Joe Biden pode não querer contrariar aliados rescindindo as barganhas de Trump. Barack Obama, de quem Biden foi vice, declarava-se o melhor amigo que Israel já teve —sua gestão chegou a listar as resoluções que vetou no Conselho de Segurança da ONU e alardear o aumento do financiamento militar a Israel— e os EUA têm elogiado a postura do Marrocos, que retirou de cima da mesa a possibilidade de independência em troca de uma “autonomia especial” ao Saara Ocidental.
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Os mapas coloniais de Trump: à esquerda aparece a comparação das diferentes “soluções” para a questão palestina, sendo o último o mapa de Trump; à direita, o mapa que incorpora o Saara Ocidental ao Marrocos.
Além de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel, cumprindo promessa antiga dos Estados Unidos e contrariando os termos do já defunto “processo de paz”, Trump apresentou em forma de ultimato seu plano por um Estado da Palestina amputado e subjugado para garantir, de pronto, a anexação de porções do território por Israel, enquanto a ocupação e a colonização israelense cobram cada vez mais caro ao povo palestino. No Saara Ocidental, a dias do aniversário de um mês desde o fim do cessar-fogo entre a Frente Polisario e o Marrocos, que durou três décadas sem qualquer avanço diplomático, Trump não só proclama, unilateralmente, como de praxe, a capitulação dos saarauís —o que não ocorrerá, garante a Polisario— como ainda o faz em forma de transação com o reino marroquino. Assim, o Marrocos do rei Mohamed VI se somou aos movimentos iniciados por Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Sudão, que também cederam, nos últimos meses, oficializando relações com Israel em troca de acordos com os EUA.
Regionalmente, o pivô tem causado grande estrago. Tendo sempre tomado parte na luta do povo palestino como uma comum, os membros da Liga Árabe defendiam desde 2002 uma solução para a septuagenária “questão da Palestina” —assim denominada no âmbito da ONU a consequência da colonização do território pelo movimento sionista— que condicionava o normalização de relações com Israel ao fim da ocupação israelense do restante da Palestina, pelo estabelecimento do segundo dos dois estados propostos pela resolução 181 de 1947 da ONU. Esta é / era a chamada Iniciativa Árabe de Paz. Com os quatro rompimentos do compromisso em pleno xeque da colonização, não surpreende que a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e a liderança do Estado da Palestina falem em traição.
Este é também um conceito que permeia a história do Saara Ocidental, onde a Frente Polisario, para evitar um “vazio jurídico”, proclamou a República Árabe Saarauí Democrática (RASD) logo do abandono do território pela potência colonial administradora, a Espanha, que o entregou aos vizinhos Marrocos e Mauritânia, em 1975. Neste movimento de ocupação consolidado pelo Marrocos, a que a Frente Polisario resistiu em 16 anos de batalha, o país árabe que apoia decisivamente os saarauís, por princípio inarredável e compromisso histórico com o direito dos povos à autodeterminação, é a Argélia. Ao menos oficialmente, em geral, os demais abstêm-se ou apoiam o Marrocos.
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Note-se que o Saara Ocidental, segundo opinião de 1975 do Tribunal Internacional de Justiça, não tinha laços de soberania com o Marrocos quando ocupado pela Espanha nem era “terra de ninguém”. Portanto, a Frente Polisario é um movimento de libertação nacional, reconhecido pela ONU como o representante legítimo do povo saarauí. Retomando a luta armada em 14 de novembro, em resposta à violação do cessar-fogo pelo Marrocos no dia anterior, os saarauís garantem que não lutam pelo retorno à situação anterior, em que esperam desde 1963, e por mais três décadas desde a adoção de um plano de acordo de 1991, pela implementação do referendo de autodeterminação. Lutam pela libertação nacional. “Por toda a pátria ou o martírio”, garantem soldados e voluntários e voluntárias saarauís que, garantindo preferir a solução política em prol de uma paz justa que nunca chegou, retornam do exterior para dar o seu contributo.
O que a atual encruzilhada na Palestina e no Saara Ocidental demonstra é que além da libertação de dois povos que lutam há décadas pela libertação nacional, ocupantes e aliados colocam em jogo o significado próprio dos princípios em que se assenta a Organização das Nações Unidas, especialmente desde as vitórias dos movimentos de descolonização. O direito à autodeterminação dos povos está em xeque e certamente não seriam os Estados Unidos de Trump nem o de Biden que resgatariam ou farão valer seu potencial emancipatório. Nos 60 anos do compromisso anticolonial assumido pela ONU, este capítulo da história não pode seguir sem conclusão.
Publicado originalmente em Cebrapaz
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