A causa palestina é internacionalista por excelência, um símbolo das lutas justas contra a opressão e exploração. Sob essa égide, em vários momentos na história, os palestinos têm expressado sua solidariedade nas lutas contra o racismo e por direitos humanos fundamentais no mundo. Foi assim, por exemplo, quando policiais brancos nos Estados Unidos assassinaram os negros George Floyd, em Minnesota, em maio deste ano, e Michael Brown, em Ferguson, em 2014, ano em que Gaza foi massacrada por Israel durante 51 dias. Foi assim quando os incêndios criminosos na Amazônia em 2019 escandalizaram o mundo. Agora é a vez de se solidarizar com os moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro, que enfrentam um problema que os palestinos sob ocupação sionista conhecem bem: o apartheid da água.
Em meio à pandemia de covid-19, mais de 1 milhão de pessoas são afetadas pelo “rodízio” de água na capital fluminense e na Baixada “em função de problema em uma bomba elevatória da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae)”, segundo reportagem publicada no portal G1 em 27 de novembro último. São moradores das favelas e periferias, a maioria negros. O racismo estrutural, herança de 388 anos de escravidão no Brasil e instrumento do capitalismo, está na base da falta de direitos humanos fundamentais, como à água.
“É um problema histórico, que se agrava muito neste momento e faz muita diferença para que a gente não seja contaminado com covid-19”, destaca a jornalista Gizele Martins, moradora da favela da Maré, que está sem água há mais de um mês. Suas torneiras e as de seus vizinhos, de outras ruas e casas na comunidade estão secas, assim como de inúmeras favelas nas zonas sul, norte e oeste fluminenses.
Segundo conta ela, que integra a Frente de Mobilização da Maré e o movimento de favelas do Rio de Janeiro, a partir de uma campanha iniciada pelos coletivos, foi divulgado um formulário na internet que em 24 horas identificou “400 locais diferentes de favelas e periferias” nessa situação, alguns sem água por mais de dois meses. Até mesmo em uma clínica da família, que atende pacientes com covid-19, as torneiras estão secas.
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“É um problema generalizado, e o que a gente tem de resposta da Cedae é que tem um aparelho quebrado e que vão tentar consertar até o final deste mês de dezembro. Mas a gente entende que isso também é parte de uma busca do Estado, dos governantes, de privatizar esse serviço que é público e essencial”, salienta Gizele. Essa foi a lógica predominante em todos os processos de desestatização no Brasil, desde os anos 1990: desmontar as estatais e então utilizar a desculpa falaciosa de ineficiência para vender o patrimônio público.
Guardadas as especificidades, há uma identificação imediata quando se conhece a realidade das favelas brasileiras e da Palestina sob apartheid israelense. É o que sentiu Gizele ao visitar a Cisjordânia ocupada em 2017: “Pude ver principalmente em Hebron e no Vale do Jordão o quanto os palestinos sofrem com a falta desse direito tão básico, tão essencial que é a água. Hebron, um local de 200 mil moradores, me lembra muito a favela da Maré, que tem 140 mil. E as nossas questões com água são muito parecidas.”
Ela continua: “Fico pensando muito o quanto a retirada e falta de direitos são parecidas. Os bairros ricos da zona sul do Rio de Janeiro não têm sofrido com a falta de água, pelo contrário, lá está tudo normalizado. Ou seja, o estado direciona esse direito para um determinado local, assim como Israel. Não é algo tipo ‘faltou água, o cano quebrou’, é planejado. Ou seja, genocídio dos palestinos, assim como da população negra, pobre e favelada. Deixar a gente sem água, tanto no Rio de Janeiro quanto na Palestina, é um crime. Esses estados precisam responder por isso, porque vidas estão sendo contaminadas, estão sendo assassinadas.”
A situação na Palestina
Informe publicado em março último pela Al Haq, organização palestina de direitos humanos, revela o que Gizele constatou em sua visita. “O acesso dos palestinos à água na Cisjordânia ocupada é negado em favor do fornecimento a assentamentos israelenses ilegais. Assim, quase 50 mil palestinos que residem na Área C [sob controle militar sionista, na divisão feita pelos desastrosos acordos de Oslo em 1993] vivem sem acesso à água limpa. Além disso, são impedidos de construir e renovar sua própria infraestrutura de água por meio de severas restrições de construção impostas pela administração israelense, tornando difícil ter água suficiente para consumo doméstico e para manter a autossuficiência e independência alimentar”, aponta a Al Haq.
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E continua: “Diante disso, em 2016, os palestinos na Cisjordânia ocupada consumiam em média apenas 73 litros de água por dia, bem abaixo dos 100 litros recomendados pela OMS [Organização Mundial da Saúde], enquanto os colonos israelenses consumiam aproximadamente 369 litros por dia, mais de três vezes a média recomendada.” Segundo a organização, hoje, esses residentes ilegais consomem três a oito vezes mais água do que toda a população palestina da Cisjordânia.
A empresa israelense responsável pelo apartheid da água é a Mekorot, que tem buscado acordos de cooperação técnica com companhias estaduais brasileiras, sempre sob a falsa propaganda de que teria feito “florescer o deserto” – contra o que o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) já obteve vitórias importantes em São Paulo e na Bahia. O informe da Al Haq desmonta essa mentira usada para a colonização na Palestina. O problema é a usurpação sionista das fontes de recursos naturais, como no Vale do Jordão, e suas ações criminosas.
A situação na Faixa de Gaza, em que vivem 2 milhões de palestinos sob cerco israelense desumano há 13 anos, como continua a organização, é “particularmente preocupante”. Em seu texto, demonstra: “De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a partir de 2019, apenas uma em cada dez famílias de Gaza tinha acesso à água limpa e segura. Apenas 5% do abastecimento na Faixa de Gaza é fornecido por Israel, a potência ocupante, enquanto o restante vem do aquífero costeiro, que está amplamente contaminado, ou de poços privados, inacessíveis para a maioria dos palestinos. Além disso, menos de 4% da água doce de Gaza é própria para uso e consumo humano.”
A ocupação e colonização sionistas criminosas, que já duram mais de 72 anos – desde a Nakba (a catástrofe com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada) –, acrescenta a Al Haq, “minam a capacidade dos palestinos de prevenir e mitigar adequadamente os impactos da pandemia de covid-19”.
Nos campos de refugiados nos países árabes em que vivem 5 milhões de palestinos impedidos de retornar às suas terras, a situação também é de extrema vulnerabilidade. Grassam a pobreza, condições insalubres e falta de água potável em habitações e ruas estreitas que lembram as favelas brasileiras.
Levantar a bandeira em solidariedade aos moradores das comunidades no Rio de Janeiro e denunciar o apartheid da água aqui e na Palestina é expressão da coalizão que tem se formado entre os oprimidos e explorados. A estes, resistência, como ensinam os palestinos, é existência.
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