Um balanço de 2020 e a “normalização” com o Apartheid israelense

Da esquerda para a direita: Primeiro-Ministro de Israel Benjamin Netanyahu, Presidente dos Estados Unidos Donald Trump, Ministro de Relações Exteriores do Bahrein Abdullatif bin Rashid al Zayani e Ministro de Relações Exteriores dos Emirados Árabes Unidos Abdullah bin Zayed bin Sultan al Nahyan, durante cerimônia de assinatura do acordo de normalização com o estado sionista, na Casa Branca, Washington DC, 15 de setembro de 2020 [Alex Wong/Getty Images]

No Grande Oriente Médio, o ano de 2020 começa e termina com duas agressões imperialistas contra autoridades iranianas. Em janeiro uma ação militar dos Estados Unidos leva ao martírio do tenente-general Qasem Soleimani, possivelmente o militar iraniano mais reconhecido na história recente. No final de novembro, o físico e engenheiro Mohsen Fakhrizadeh, com patente de brigadeiro-general na Guarda Revolucionária (IRGC, Pasdaran na romanização do farsi) foi assassinado através de uma metralhadora de combate acionada provavelmente acionada por satélite. Ressalto estas passagens, porque as agressões ao Irã vão de encontro com a determinação do Estado persa e seus aliados na expulsão das forças estadunidenses de toda a região. Abordaremos esse tema em específico no início de 2021, valendo aqui como registro de um balanço anual com momentos de cerco diplomático ao povo palestino e às causas dos oprimidos no Mundo Árabe e territórios conexos.

Após o ato criminoso citado acima, os Estados Unidos em consonância com Israel lançaram seu plano macabro de “Acordo do Século”. A ideia seria razoavelmente “simples”. Oficializar o domínio sionista nos territórios Ocupados da Naksa, e a formalização dos bantustões na Cisjordânia e de Gaza como sendo a Soweto árabe. O cerco implicava formalizar o uso dos recursos marítimos do Mediterrâneo mesmo na costa palestina que seria de uso exclusivo segundo resolução da ONU. Ao mesmo tempo, a proposição de Trump visava atrair investimentos tripartites, com capitais das petro-monarquias do Golfo e a ampliação do porto israelense de Eilat, no Mar Vermelho.

Um efeito direto desta proposta infame foi a possibilidade de unificação das forças políticas palestinas e a afirmação de um novo círculo de aproximações estratégicas na região. Desta forma, no território ocupado e na política de refugiados, a reaproximação de Fatah e Hamas, somada às forças mais à esquerda e mais islamitas, conseguiria gerar a unidade política necessária para dar batalha ao inimigo de forma coordenada. Infelizmente, esse processo está lento e ainda sofre possibilidades de não se realizar por completo.

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Simultaneamente, um possível realinhamento da Turquia, que estaria definitivamente preocupada em fazer uma política regional no apoio da Palestina, alinhando-se com países que têm essa mesma preocupação: o titubeante gabinete do Líbano (antes e depois da explosão no Porto de Beirute); o governo sírio em Damasco; o ainda frágil Poder Executivo em Bagdá; a monarquia do Qatar e a República Islâmica do Irã. Em uma posição geográfica mais distante e também convivendo com intensos problemas internos, a Argélia estaria nesta mesma condição. Esses países formariam um círculo de força e apoio às mais variadas formas de resistência contra a presença de cruzados imperialistas no Oriente Médio e com algum grau de solidariedade no Mundo Árabe e no Mundo Islâmico. Evidente que esse nível de alianças ainda depende de agendas próprias e interesses regionais por vezes conflitantes, mas é uma sadia resposta aos planos de cerco diplomático e ocupação permanente na Palestina.

Antes do chamado “Acordo do Século”, Tel Aviv acenava com uma infame oferta de “compra de território jordaniano” para alocação de população palestina das áreas A, B e C da Cisjordânia. Tal absurdo vinha acompanhado da tensão interna no Reino Hachemita da Jordânia, onde ainda sobra identificação quase exclusiva entre o aparelho de Estado e o círculo mais próximo de sua majestade e os mais variados graus de parentesco diretos e indiretos. Com menos desfaçatez do que a compra de terras na Jordânia, a militarização do Sinai e a política de fronteira fechada entre Gaza e Egito sob mando dos militares leais ao general El-Sisi segue no mesmo tom de cerco estratégico.

A jogada dupla da aliança Netanyahu-Gantz com Trump veio no caminho do “mal menor”. A normalização das relações diplomáticas de Israel com países-membro da Liga Árabe vai ao encontro das mais deploráveis posições que esses mesmos Estados absolutistas vêm tomando. A começar com os Emirados Árabes Unidos (EAU), em agosto, cujo emir de Abu Dhabi e presidente da união política, Bin Zayed (me perdoem a petulância, mas me recuso a chama-lo de Khalifa), vinha realizando acordos securitários e na área de inteligência com Israel. EAU foi secundado pelo Bahrain, não por coincidência país onde o Império estadunidense estaciona sua 5ª frota na Ilha de Manama.

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É impossível abstrair o cenário mais complexo da região da Causa Palestina. Os navios de guerra do Império afetam diretamente a navegação no Estreito de Ormuz o que implica em parcela significativa da atividade econômica de Irã e Qatar, além de 20% dos barris de petróleo comercializados no planeta. A prepotência dos cruzados afirma que a 5ª Frota, pertencente ao Comando Central, “garante segurança” no Golfo Pérsico, Mar Vermelho e Mar da Arábia. O inverso é totalmente verdadeiro. Infelizmente as monarquias do Golfo se portam mais como Estados vassalos competindo entre si pelos favores anglo-saxões do século XXI do que países árabes a cumprir um destino coletivo. Desta forma, a Liga Árabe se desmoraliza ainda mais, para além das posições da Arábia Saudita e sua coalizão com os Emirados, apoiando uma facção própria no conflito do Iêmen e fingindo não ver uma ampla malha territorial sob o controle da Al Qaeda na Península Arábica (AQAP). Obviamente Israel não emite nem uma nota a respeito, seguindo na hipocrisia de sempre.

Falando em hipocrisia, temos dois casos. Primeiro o ciclo de normalizações traz o caso do Sudão, que em tratativas de plenas relações diplomáticas com o Estado Colonial deixa de ser considerado um país apoiador do terrorismo, mesmo tendo vínculos históricos com o salafismo. Diante da competição por influências regionais, a China tem no governo de Cartum um ativo fornecedor de petróleo e pelo visto, na disputa por influência literalmente, Netanyahu e o derrotado Trump aceitam tudo.

Em segundo lugar, a normalização com o Apartheid israelense foi afirmada pela monarquia marroquina, quando o Rei Mohammed VI trocou o destino dos palestinos pela ocupação ilegal que sua coroa promove contra a República Árabe Saaraui Democrática desde o ano de 1976. A valente Frente Polisário resiste de todas as formas possíveis, mas foi “vendida” pelo secretário de Estado Mike Pompeo, o pró-cônsul cruzado da ridícula administração republicana de Trump (). Na prática isso fere o cessar fogo de 1991, ratificado pela ONU e que gerou um impasse no Saara Ocidental.

O ano de 2020 não passou ao largo de conflitos de tipo realismo regional, que muito nos entristecem e não deveriam mais existir. Infelizmente a luta pelo destino dos árabes, a libertação da Palestina e o eixo de resistência anti-imperialista sofrem distintas formas de agressão externa e também posições beligerantes sectárias que poderiam ser perfeitamente evitadas. Os acordos de normalização do Estado Colonial do Apartheid (Israel) são tão absurdos que poderiam servir de motivação para uma política cada vez mais madura no Grande Oriente Médio, onde a relação entre países leais não fosse ameaçada por temas secundários. Um passo concreto poderia ser a criação de acordos majoritários e consórcios de desenvolvimento científico-tecnológico, tanto para defesa como adentrando em cadeias de produção com alto valor agregado. A interação de setores-chave com produção consorciada de ativos estratégicos poderia ser uma saída para os impasses ainda remanescentes.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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