O ano de 2020 encerra e junto com ele temos o desafio do período pós-pandemia e a não reeleição de Donald Trump, o presidente do Império decadente dos EUA (ainda com muita presença no Grande Oriente Médio e com força desestabilizadora em países e territórios). Neste texto fazemos algumas projeções com análise crítica. Vamos lá.
Começamos pelo tema da Palestina Ocupada. O primeiro passo concreto para um avanço na luta de libertação é a tão desejada unidade política, rompida em 2007 e que, desde então, fraciona o povo palestino. Essa situação facilita o acionar do Apartheid israelense, pois garante pouca relação solidária entre as partes majoritárias (Fatah e Hamas) e polariza o debate tanto na interna das forças políticas como na diáspora palestina.
Do lado do inimigo é visível o racha na sociedade colonial, com evidentes subdivisões étnico-raciais e, dentro disso, uma tragédia para os árabes: a radicalização à direita de parte da população mizrahim (judeus de origem árabe), sendo essa evidência manipulada como discurso legitimador da traição da monarquia marroquina ao “normalizar” relações com Israel. O Estado colonial é uma complexa gama de populações sobrepostas, em que na base da pirâmide estão os cerca de 20% de árabe-palestinos como cidadãos de segunda categoria, sendo vedado o acesso a determinados postos de poder.
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Considerando o problema demográfico e a cada vez mais crescente pressão autônoma dos colonos invasores da Cisjordânia, financiados por apoiadores de crime internacional, a política interna israelense é um problema permanente, a não ser sua relação umbilical com Washington. Como já demonstramos antes, ao abordar as lealdades imperialistas de Joe Biden e Kamala Harris, seria absurdo pensar em uma mudança substantiva da política do Império no que diz respeito à ofensiva diplomática israelense e à “normalização” com países membros da Liga Árabe.
Logo, a única saída parece ser uma diplomacia árabe e islâmica mais propositiva e menos hegemônica, reforçando alguns eixos fundamentais e tentando garantir a estabilidade nos países, desde que respeitando os direitos históricos dos povos e territórios. Nesse sentido, as relações diplomáticas e as desejáveis aproximações econômicas em cadeias produtivas de alta complexidade e valor agregado formam uma via de médio prazo que tanto o inimigo invasor como o seu patrocinador imperial jamais aceitarão de forma tranquila. Países como Argélia, Catar, Turquia e Irã poderiam pactuar acordos de fôlego, marcando uma agenda comum e buscando garantir graus crescentes de democracia política com apoio às causas urgentes da região.
Para diminuir os riscos da desestabilização seria desejável um conjunto de saídas negociadas para os seguintes cenários conflituosos, em que as potências regionais tendem a projetar poder rival entre si:
– No Cáucaso, com trégua permanente e negociações mais frutíferas para o delicado tema do conflito entre Armênia e Azerbaijão pelo enclave de Nagorno-Karabakh;
– Na presença cada vez maior da China como parceira econômica de vários países árabes e muçulmanos, sem abrir mão das reivindicações históricas e legítimas da população uigur no Turquestão Leste;
– Na Líbia, tentando estabelecer um co-governo viável, não permitindo o fracionamento cada vez mais ampliado em territórios praticamente semi-autônomos;
– Na Síria, cujo governo de Damasco, na prática, retoma o controle sobre a maior parte de sua mancha territorial, derrota os salafistas e pode estabelecer um novo pacto constitucional, garantindo direitos fundamentais que incluam a parcela da Federação Democrática do Norte da Síria.
Citei os quatro conflitos acima porque todos esses cenários complexos incluem disputas diretas ou indiretas (proxy wars) entre as potências regionais (árabes ou islâmicas) e que concordam no apoio da libertação da Palestina. Como já dissemos em artigos anteriores ou se supera a tentação do realismo regional, ou jamais teremos a unidade evocada por Salahuddin para derrotar os criminosos cruzados invasores do Levante e da Palestina.
Nesse sentido é central que a correta luta anti-imperialista e o eixo da resistência não venham a hipotecar ou impossibilitem a efervescente sociedade civil libanesa, tentando romper com o sistema sectário instaurado após o Acordo de Taif, em setembro de 1989. Já não é tão ruim ter o Líbano sem guerra fratricida, mas seria mais frutífero superar a pressão externa e garantir mecanismos políticos e econômicos que não passassem pelas mesmas chefias de clãs a determinar os rumos do país.
Ressalto também a importância de o Líbano ter uma vigorosa reforma no seu sistema financeiro, a começar pelo papel dos bancos privados e a “quebra” do Banque du Liban (Banco Central da terra dos cedros) e, para isso, a pior saída é sempre se jogar nas garras do FMI – como vem sendo anunciado. Outra presença externa perigosa é a pretensão imperial da França, com o presidente banqueiro Emmanuel Macron se apresentando como uma falsa saída onde nem sequer deveria ter influência. Na última vez que isso ocorreu com vigor, com ocupação ostensiva de tropas imperiais cruzadas francesas e estadunidenses, tudo terminou de forma irredutível em outubro de 1983. Apenas a arrogância imperialista de quem invadiu quase todo o Magrebe a partir do início do século XIX poderia tentar repetir momentos tão dramáticos.
Os cenários e projeções narradas acima partem do seguinte pressuposto. Não é admissível que países árabes ou islâmicos aceitem “normalizar” relações com os invasores da Palestina e assim deixem de lado o “dever de proteção aos oprimidos como forma mais digna de luta justa”. As capacidades de pressão do Estado colonial e seu patrocinador imperialista são várias, logo, é importante ter margem de negociação entre os pares, bem como com potências cada vez mais presentes no Grande Oriente Médio (Rússia e China) e importantes países emergentes (como Brasil, México, Indonésia, Malásia, Venezuela, Argentina, África do Sul, Paquistão e Índia, dentre outros).
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Definitivamente, uma liderança palestina democraticamente eleita para todos os postos de poder e institucionalmente unificada é condição fundamental para romper o cerco do Apartheid israelense. A probabilidade de mais traições vindas de regimes despóticos (monarquias absolutistas), Estados sempre suspeitos por seu comportamento pendular (como o Sudão) ou países com vocação de auxiliares do imperialismo (a exemplo do Marrocos e sua invasão da República Saharaui) sempre crescem em cenários de incertezas entre pares e aliados. Tudo o que puder ser feito no sentido inverso vem a favor da libertação da Palestina e da estabilidade em países e territórios do Grande Oriente Médio e do Mundo Islâmico em geral.
Em 2021, os direitos do povo palestino seguem sendo o maior divisor de águas em toda a região, e como tal devem balizar alianças, distanciamentos, proximidades e condições rivais. Temos de tentar ajudar os estrategistas médios a verem para além do realismo regional, focando nas metas concretas de unidade e libertação de Gaza e Cisjordância, além do direito ao retorno. Assim faremos uma contribuição concreta para que as ruas árabes e de países vizinhos possam garantir o apoio popular incondicional da libertação dos oprimidos.
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