Covid-19 sob Apartheid: como Israel manipula o sofrimento dos palestinos

Trabalhadores palestinos aguardam em fila para atravessar um posto de controle militar israelense na cidade de Hebron (Al-Khalil), Cisjordânia ocupada, em 3 de maio de 2020 [Hazem Bader/AFP/Getty Images]

A decisão israelense de excluir os palestinos de sua campanha de vacinação contra o covid-19 pode surpreender a muitos. Mesmo diante do péssimo histórico humanitário de Israel, negar aos palestinos o acesso a medicamentos que salvam vidas parece absurdamente cruel.

A Anistia Internacional, entre outras organizações, condenou a decisão do governo israelense de impedir os palestinos de receber a vacina. O grupo de direitos humanos descreveu a medida do estado sionista como evidência de “discriminação institucionalizada, que define a política do governo israelense em relação aos palestinos”.

A Autoridade Palestina tampouco espera que Israel forneça o imunizante aos hospitais palestinos nos territórios ocupados, ao anunciar o recebimento de dois milhões de doses da vacina Oxford-AstraZeneca, em fevereiro próximo. Ao contrário, o pedido feito por Hussein al-Sheikh, coordenador de assuntos palestinos com Israel, resumiu-se a míseras 10.000 doses para ajudar a proteger trabalhadores de linha de frente. Ainda assim, o Ministério da Saúde de Israel negou o apelo.

Segundo a agência de notícias palestina Wafa, ao todo 1.629 palestinos morreram dentre 160.043 infectados pelo mortal coronavírus, conforme dados compilados até 4 de janeiro. Embora números tão preocupantes possam ser encontrados em todo o globo, a crise palestina diante da pandemia é agravada pela ocupação militar israelense, pelo estado de apartheid e, no caso de Gaza, pelo cerco implacável.

Pior ainda, desde o início do ano passado, o Exército de Israel conduziu diversas operações nos territórios ocupados para desmontar qualquer iniciativa palestina para conceder testes gratuitos para o covid-19. Segundo o grupo de direitos humanos Al Haq, logo em março de 2020, diversas clínicas de campo foram fechadas e equipamentos médicos confiscados na cidade palestina de Khirbet Ibiza, no Vale do Jordão, Cisjordânia ocupada. Este padrão repetiu-se em Jerusalém Oriental, Hebron e diversos outros lugares nos meses seguintes.

Não há justificativa legal ou moral para as ações israelenses. A Quarta Convenção de Genebra de 1949 determina que a potência ocupante tem o “dever de garantir e manter … instalações e serviços de saúde”, sobretudo ao tomar “medidas preventivas necessárias para combater a propagação de doenças contagiosas e epidemias”.

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Mesmo os Acordos de Oslo, apesar de seu fracasso em tratar de muitos tópicos cruciais relevantes à liberdade do povo palestino, obriga ambos os lados a “cooperar no combate a epidemias e auxiliar um ao outro em tempos de emergência”, como reiterou uma reportagem recente do jornal The New York Times.

Nem todos os israelenses negam a obrigação legal do estado sionista em conceder ajuda aos palestinos para conter a rápida propagação da doença. A admissão, contudo, vem condicionada. O ex-embaixador israelense Alan Baker afirmou ao The New York Times que, embora a lei internacional “imponha uma obrigação a Israel” referente ao fornecimento de vacinas, os palestinos devem antes libertar soldados israelenses capturados em Gaza, durante e após a brutal ofensiva de 2014.

A ironia na lógica de Baker é que Israel mantém 5.000 palestinos detidos em suas cadeias, incluindo mulheres e crianças, centenas dos quais aprisionados sem qualquer julgamento ou devido processo.

Os israelenses capturados em Gaza são mantidos então como moeda de troca, para tentar atenuar o bloqueio hermético de Israel sobre o pequeno território litorâneo densamente povoado. Uma das principais demandas palestinas para a soltura dos soldados israelense é que o estado sionista permita a transferência de equipamentos médicos e remédios essenciais aos dois milhões de palestinos na Faixa de Gaza. Grupos humanitários locais e internacionais denunciam há anos índices assombrosos de mortes evitáveis em Gaza, dado que Israel deliberadamente impede os hospitais palestinos de obter medicação contra o câncer.

Forças israelenses continuam a prender palestinos apesar do coronavírus [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Muito antes da pandemia de coronavírus, Israel transformou em arma o próprio acesso à medicina e as ruínas do setor de saúde de Gaza são evidência clara de tais crimes.

As prisões superlotadas de Israel destacam ainda como outro testemunho gritante da má gestão da ocupação diante do surto de covid-19. Apesar dos reiterados apelos das Nações Unidas e, particularmente, da Organização Mundial da Saúde (OMS), que exortam medidas imediatas para atenuar a crise no sistema penitenciário, Israel fez pouco ou nada aos presos palestinos. A organização Al Haq reportou ainda que Israel “não tomou nenhuma medida adequada para melhorar os serviços de saúde e higiene aos prisioneiros palestinos”, a despeito das diretrizes da OMS para prevenir a propagação do coronavírus nas prisões. As consequências são brutais, dado que a doença continua a clamar novas vítimas entre os palestinos detidos, em uma proporção muito maior do que as cadeias israelenses.

A obstrução deliberada de Israel diante dos esforços palestinos para combater o covid-19 é consistente com a trajetória de racismo da ocupação sionista, sob a qual palestinos colonizados são explorados por sua terra, água e mão de obra barata, enquanto jamais são considerados como qualquer prioridade às obrigações israelenses, mesmo durante tempos de pandemia mortal. Deste modo, Israel é uma potência ocupante que recusa-se a reconhecer ou respeitar qualquer uma de suas obrigações básicas como tal, consagradas pela lei internacional.

A tentativa israelense de manipular o sofrimento palestino como resultado da pandemia também desafia nossa própria perspectiva sobre o relacionamento fundamental entre Israel e Palestina. Frequentemente, falamos do apartheid israelense ao ilustrá-lo com muros gigantescos, cercas e postos de controle militar, que efetivamente segregam e impõem jaulas a céu aberto às comunidades palestinas nativas.

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No entanto, tais imagens tratam apenas da manifestação física do colonialismo e do apartheid israelense. Dentro de Israel, não obstante, o apartheid é ainda mais profundo, dado que alcança quase toda faceta da sociedade, onde judeus israelenses, incluindo colonos, são tratados como cidadãos de primeira classe, enquanto árabes palestinos, sejam cristãos ou muçulmanos, são expropriados de seus direitos mais básicos, incluindo aqueles garantidos pela lei internacional.

Embora o comportamento israelense não seja surpreendente, mas sim consistente com a realidade sórdida da ocupação militar e do racismo institucionalizado, também demonstra um caráter autodestrutivo. Apesar do óbvio desequilíbrio nas relações sociais entre o estado sionista e os nativos palestinos, o contanto entre as partes é constante – não como iguais, mas como ocupante e ocupado. Dado que o coronavírus não respeita as matrizes de controle da ocupação militar israelense, a doença viaja através de fronteiras físicas e postos de controle, criados por Israel para garantir a opressão aos palestinos. Deste modo, evidente, não pode haver contenção do covid-19 em Israel, caso continue a espalhar-se entre o povo palestino.

Muito depois da mortal pandemia, infelizmente, a tragédia na Palestina poderá permanecer impune, até que acabe a ocupação e o apartheid de Israel contra o povo palestino.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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