Quando a organização B’Tselem descreveu Israel como estado sionista, em documento de posição política, na última semana, não apenas dissipou longevas ilusões sobre o estado sionista. Ao afirmar que Israel “promove e perpetua a supremacia judaica do Mar Mediterrâneo ao Rio Jordão”, o maior grupo de direitos humanos israelense potencialmente resgatou a possibilidade de um debate aberto e honesto sobre a resistência palestina, sequestrado por aqueles que buscam reprimir a liberdade de expressão sob o pretexto de combater o antissemitismo.
Pois este é o objetivo daqueles que defendem a adoção da controversa definição de antissemitismo promovida pela Aliança Internacional de Memória do Holocausto (IHRA). O exemplar documento da B’Tselem, junto de um artigo irrefutável publicado alguns dias antes no London Review of Books, de autoria do escritor americano Nathan Thrall, expôs a mentira no coração da suposta “definição de trabalho”.
A disputa concentra-se em torno de sete dos onze exemplos ilustrativos que vinculam antissemitismo com a crítica ao Estado de Israel. Caso digamos que a existência de Israel é um empreendimento racista e colonial, seremos tratados como antissemitas. Parece ridículo, mas a B’Tselem, portanto, é uma entidade antissemita aos olhos da IHRA. Embora a definição não possua qualquer resguardo legal, sua adoção por partidos políticos, organizações da sociedade civil e instituições acadêmicas implicam em um efeito devastador contra a liberdade de expressão e manifestação, razão pela qual a coação do governo britânico para que universidades adotem a definição da IHRA é amplamente repudiada.
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Entre os críticos da definição, estão o Instituto de Relações Raciais, proeminentes advogados, a organização de direitos civis Liberty, especialistas acadêmicos sobre antissemitismo, quarenta organizações judaicas por justiça social e mais de oitenta grupos britânicos do movimento negro e outras minorias. Como se não bastasse, Kenneth Stern, um dos autores da própria definição da IHRA, já expressou profunda preocupação sobre seu uso para suprimir críticas legítimas a Israel nos campi universitários.
A carta de posicionamento da B’Tselem e o artigo de Thrall, intitulado “The Separate Regimes Delusion”, que refuta a noção de que Israel e sua ocupação podem ser analisados separadamente, não apenas destacam os problemas da IHRA e as razões pelas quais os críticos estão certos em alertar sobre ataques à liberdade de expressão, como também desmentem pressupostos de décadas sobre a tão alardeada democracia israelense. Supostamente, a chamada democracia justifica o sentimento ocidental de obrigação perante a defesa do estado sionista, a despeito de inúmeras violações flagrantes de direitos humanos e da lei internacional.
Mesmo críticos de destaque hesitam em romper com o paradigma e abandonar o consenso amplo de que, apesar do apartheid imposto contra os territórios palestinos ocupados e mesmo “dentro de Israel”, há alguma democracia. Esta mesma relutância, por vezes, é baseada na falsa noção de que a ocupação é temporária e que os palestinos terão eventualmente seu próprio estado autônomo. Trata-se de mera ilusão. Nas sete décadas desde a criação de Israel sobre as terras da Palestina, houve apenas seis meses, entre 1966 e 1967, nos quais o estado sionista não impôs um governo de ocupação militar aogrupo étnico palestino, à medida que expropria suas terras.
Diferente dos críticos indulgentes de Israel, a B’Tselem argumenta que, após mais de meio século, o regime e sua ocupação devem ser tratados como uma entidade única, cujas diretrizes são determinadas pelo princípio organizacional racista de “avançar e perpetuar a supremacia de um grupo – os judeus – sobre outro – os palestinos”. Segundo a organização humanitária israelense, o critério legal para descrever Israel como estado de apartheid foi cumprido, após vasta análise das políticas e leis projetadas em favor do controle e privilégio exclusivamente judaico. O documento da B’Tselem menciona uma série de declarações oficiais e práticas políticas, incluindo o comentário do Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu, proferido em 2019, de que “Israel não é um estado para todos os seus cidadãos”. Cita ainda a chamada Lei do Estado-Nação, aprovada em 2018, cujo texto determina expressamente que “o direito de exercer autodeterminação nacional [em Israel] é único ao povo judeu”, além de consagrar como política de estado “o desenvolvimento dos assentamentos judaicos como valor nacional”.
Enquanto a B’Tselem oferece diversos exemplos da metodologia israelense para impor padrões de direitos civis com base em etnicidade, na Palestina ocupada, Thrall – residente de Jerusalém e diretor da ong International Crisis Group (ICG) – descarta em detalhes qualquer ilusão de dois regimes distintos. O escritor americano argumenta que a noção de Israel como democracia repousa sobre um “muro conceitual” entre o país e os territórios ocupados, que não existe na prática. Ao contestar a lógica sionista, o artigo de Thrall afirma: “A ficção de regimes separados permite aos sionistas liberais que promovam uma solução de dois estados, em termos do politicamente correto, com base nas fronteiras pré-1967”.
Thrall reconhece ainda que não é difícil demonstrar que as ações israelenses na Cisjordânia ocupada equivalem a apartheid e oferece exemplos notáveis, ao reiterar que este rótulo deveria ser extendido a todo o estado sionista, não apenas aos territórios ocupados. Por exemplo: desde a década de 1980, cidadãos palestinos em Israel são o único grupo sujeito a julgamento em cortes militares; das terras designadas pelo estado para qualquer tipo de uso, 99.76% são destinadas a assentamentos exclusivamente judaicos; israelenses podem circular livremente entre Israel e os assentamentos ilegais na Cisjordânia, diferente dos palestinos; o Knesset aprova habitualmente peças legislativas que aplicam-se somente à Cisjordânia ocupada; entre outras políticas que comprovam a tese. Insiste Thrall: “A absorção israelense da Cisjordânia é um esforço conjunto de todos os ramos do governo – legislativo, executivo e judiciário”.
A conclusão do documento “This is Apartheid” (“Isto é Apartheid”), divulgado pela B’Tselem, e do artigo do escritor americano é a mesma: é impossível manter o discurso restrito ao apartheid nos territórios palestinos ocupados, da mesma forma que é impossível considerar a ocupação como iniciativa provisória.
Ambos os textos incitaram um debate contundente entre críticos normalmente avessos a retratar Israel como estado de apartheid. Um editorial do The Guardian, por exemplo, questionou se o apartheid israelense é “profecia ou descrição”. Relutantemente, aceitou que “os palestinos, ao contrário dos judeus israelenses, vivem sob um mosaico fragmentado de leis, frequentemente discriminatórias, e convivem com autoridades públicas que parecem indiferentes aos seus sofrimentos”. Porém, ao invés de chegar à firme conclusão de que Israel de fato representa um estado de apartheid, o jornal britânico – na melhor das hipóteses, um crítico manso da ocupação militar em curso – deixou seus leitores com a pergunta: “E se houver apenas, na realidade, um único regime entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, ao invés de uma potência política que controla um território no qual há regimes distintos?”
Outros observadores mostraram-se mais honestos sobre sua conversão. Ao explicar as razões pelas quais foi persuadido a descrever toda a área, do rio ao mar, como regime de apartheid, o professor Norman Finkelstein constatou: “A base para esta conclusão é simples e direta”. O traço determinante de uma ocupação segundo a lei internacional, explicou Finkelstein, é seu caráter provisório; caso não-provisório, então trata-se de anexação ilegal. Em seguida, admitiu: “Após mais de meio século de ‘ocupação’ israelense e após reiteradas declarações do governo de Israel de que não pretende retirar-se dos territórios palestinos ocupados, em conformidade com a lei internacional, a única inferência lógica é que os territórios foram de fato anexados, independente do rótulo jurídico imposto a eles por Israel”. Portanto, concluiu Finkelstein, Israel é uma única entidade – “do rio ao mar”.
Em teoria, o debate sobre apartheid israelense lançado pelo documento da B’Tselem poderia denotar maiores dificuldades para difamar críticos legítimos do racismo sistemático de Israel como antissemitas. A carta não apenas refuta exemplos absurdos propostos pela IHRA em termos de racismo antijudaico, como também encoraja questões constrangedoras a organizações como o Partido Trabalhista do Reino Unido, que adotou a controversa definição sem sequer cogitar a realidade da ocupação. Sir Keir Starmer, líder trabalhista, que adotou cegamente os critérios da IHRA, poderá agora expulsar membros do partido que expressarem as mesmas críticas do mais proeminente grupo de direitos humanos israelense? Universidades serão forçadas a censurar seus estudantes que denunciam o apartheid de Israel, caso os esforços do governo conservador para adoção acadêmica da IHRA sejam bem sucedidos?
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Enquanto aguardamos as respostas para estas questões, parece óbvio que aqueles que adotaram a definição de antissemitismo da IHRA foram manipulados a fazê-lo sob uma série de ilusões. Israel não é uma democracia, por definição; tampouco tem a intenção ou desejo de encerrar a ocupação; a solução de dois estados e o “processo de paz” são apenas ficções para ganhar tempo e expandir ilegalmente sua colonização.
Caso haja seriedade nos anseios por ajudar as doze milhões de pessoas que vivem na Palestina histórica, atolada em um conflito aparentemente eterno, é preciso ser honesto consigo mesmo e com todo o mundo. Como disse o diretor executivo da B’Tselem: “Chamar as coisas pelo nome – apartheid – não expressa desespero, mas sim clareza moral, um primeiro passo em uma longa jornada inspirada pela esperança. Veja a realidade como ela é, dê seu verdadeiro nome sem hesitar. Assim, poderemos chegar a um futuro justo”.
É hora de descartar a definição da IHRA de antissemitismo. Não há dúvida – é hora de fazê-lo.
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