Trinta e dois mortos e mais de 110 feridos foram adicionados às estatísticas de vítimas de bombardeios no Iraque. Dois homens-bomba foram responsáveis, armados de explosivos, quando detonaram a si mesmos, matando e mutilando vítimas inocentes em um mercado de roupas de segunda mão na Praça Tayaran, centro da capital Bagdá, na última quinta-feira (21).
O que sabemos sobre as vítimas? Que vendiam e compravam roupas usadas. Entre elas, trabalhadores que ofereciam serviços e artigos ao menor custo possível, gente pobre e simples que vendia coisas que outras pessoas já não precisam mais, a preços que não os impedem de passar fome. Porém, resistiam e sentavam-se na praça para vender seus itens e preservar seu orgulho, ao invés de implorar por esmolas nas ruas de Bagdá.
Fora os dois jovens responsáveis, Omar e Ali, todos os outros mortos são anônimos. Suas vidas foram reduzidas a estatísticas acrescentadas à lista de outras vítimas de atentados executados na Praça Tayaran, em 2018 e 2019. Serão apenas números entre outras vítimas por toda a capital e cidades do Iraque. Mas tais números excedem um milhão desde 2003. Suas vidas foram o preço da mudança, seja liberdade ou queda de Bagdá. E não há jornalismo investigativo independente capaz de registrar seus nomes e os detalhes de suas vidas para que não sejam esquecidas, dado que os próprios jornalistas são vítimas de crimes desta e de outra natureza.
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O que sabemos dos homens-bomba? Salvo o atentado aterrador e o uso de seus corpos para espalhar morte e destruição, quase nada. Porém, há sempre um inimigo em mãos e rumores e teorias conspiratórias ainda proliferam, além da desconfiança nas agências de segurança.
As reações do governo nos ajudam a apontar os dedos em sua direção. Apenas uma hora depois do atentado, um oficial de segurança compareceu em frente às câmeras na praça atingida e alegou a execução do ataque por dois homens-bomba possível ou definitivamente ligados ao Daesh (Estado Islâmico). Disse isso sem qualquer investigação, sem reunir evidências ou mesmo isolar o local do crime para impedir contaminação ou sequer em respeito aos restos mortais das vítimas espalhados por toda a praça.
Com impressionante celeridade, uma equipe de limpeza chegou e limpou o local, como nunca antes na história. Ao invés de aguardar a perícia, a praça foi esterilizada de qualquer gota de sangue ou restos mortais, misturados com pedaços dos corpos dos dois suicidas. Não ficou qualquer evidência forense para que a polícia e agências de segurança pudessem trabalhar, como é feito no resto do mundo, a fim de identificar os criminosos e seus motivos.
Oficiais de “segurança” então começaram a emitir notas ao povo iraquiano, decoradas há tempos. Tratam-se de declarações prontas e alinhadas com a agenda dos partidos políticos promovida nos canais de imprensa. Em comentário exclusivo à emissora de televisão Alhurra, sediada em Washington e fundada pela CIA, o major-general Tahseen al-Khafaji, porta-voz do comando de operações iraquiano, alegou que um “ato terrorista foi perpetrado por uma célula dormente do Estado Islâmico”. Em seguida, insistiu que forças de segurança estão em busca dos responsáveis e cúmplices. A retórica bate precisamente com o que querem ouvir os políticos de Washington, para que possam justificar a continuidade de sua intervenção no Iraque, sob pretexto de “guerra ao terror”.
Os comentários do general refletem o discurso e as ações de Mustafa al-Khadimi, tomadas como Primeiro-Ministro e comandante-chefe das Forças Armadas. É preciso observar detalhadamente tais declarações, a fim de achar algum benefício público ou mesmo sinceridade. Al-Khadimi presidiu um encontro com líderes dos serviços de inteligência e segurança “para debater o ataque e suas consequências” e ordenou a formação de um comitê investigativo, apenas mais um entre centenas de comissões de tipo – soterradas pouco a pouco em corrupção. O premiê também deu ordens para instituir mudanças nas equipes de segurança responsáveis pelo “incidente da Praça Tayaran”. Pode até parecer uma medida positiva à primeira vista, até ficar claro, mais outra vez, que trata-se de um jogo de cartas marcadas.
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As mesmas pessoas de fato permutaram as mesmas cadeiras no governo, sem jamais serem responsabilizadas por uma negligência mortal de anos e anos. E por que o premiê prefere descrever o massacre como “incidente”? Como alguém pode descrever a morte de 32 pessoas, além de 110 feridos, devido a um atentado suicida, como mero “incidente”? Pois bem, é a linguagem do ocupante, que descreve seus próprios crimes, suas próprias violações e o assassinato sistemático de milhares de iraquianos como apenas “incidentes”.
Al-Khadimi não parou por aí. Utilizou sua voz pública em plena consonância com a retórica dos Estados Unidos de “guerra ao terror”. O primeiro-ministro efetivamente sugeriu que a instabilidade implica na manutenção da intervenção estrangeira, ao afirmar que a batalha contra o terrorismo é contínua e prolongada e que não pretende recuar um palmo no combate.
Suas promessas domésticas, entretanto, exageram em termos das capacidades do estado e mesmos dos esforços dos serviços de segurança e inteligência para punir aqueles por trás deste ataque hediondo. Al-Khadimi prosseguiu ao garantir que tais agências cumprirão seu dever em retificar qualquer complacência, frouxidão ou fraqueza entre suas equipes. Em seguida, prometeu permanecer ao lado do povo em sua busca por eleições justas e legítimas. Nada mais que uma arapuca na qual muitos analistas políticos de fato caíram, ao reportar o massacre na Praça Tayaran como tentativa terrorista de frustrar as eleições marcadas para outubro, dado que representa um notório aspecto histórico do conflito Irã-Estados Unidos, que continua a espalhar-se na forma de crime organizado por toda a região. O Iraque vive neste ambiente desde a invasão americana em 2003 e o recente massacre não foi o último.
Vale retornar a julho de 2020, a fim de examinar a honestidade de al-Khadimi, quando comentou sobre o assassinato de ativistas iraquianos, sobretudo o assassinato do conhecido analista político Hisham al-Hashimi, cuja morte foi capturada em câmera de vigilância e divulgada amplamente pela mídia local e internacional. Em 7 de julho, al-Khadimi prometeu que o “Iraque não vai dormir” até que os assassinos de al-Hashimi sejam levados à Justiça. “Não permitiremos que ninguém transforme o Iraque em um estado mafioso”, insistiu o premiê. “Ninguém”, prosseguiu, “está acima da lei”.
Naquele instante como agora, al-Khadimi ordenou a formação de um comitê de inquérito judicial e demitiu e anunciou uma investigação sobre o comandante de segurança responsável pela área onde al-Hashimi foi assassinado. Qual foi o resultado? Nenhum. Nenhum resultado de nenhuma investigação jamais foi anunciado publicamente e os criminosos jamais foram presos. O assassinato foi relegado a “grupos armados”, da mesma forma que milhares de crimes semelhantes tanto antes, quanto depois.
É importante documentar todas as declarações e alegações de al-Khadimi, sobretudo quando reitera sua responsabilidade perante o povo – como “Primeiro-Ministro e comandante-chefe” –, além de seu insistente fracasso em cumprir suas promessas e seus deveres. Suas principais atribuições são proteger seus cidadãos, implementar a lei e a justiça e garantir a estabilidade política, econômica e social. Além disso, é dever da mídia independente e de trabalhadores de direitos humanos e ativistas políticos iraquianos representar o governo como verdadeiramente é: uma aglomerado de gangues e milícias incapazes e não confiáveis, com máscaras partidárias que alimentam corrupção, violência, crime, miséria e analfabetismo. Tudo isso garante razões para o impedimento e indiciamento de al-Khadimi por seu enorme fracasso perante o povo iraquiano, à medida que continua a proteger criminosos de qualquer justiça.
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Este artigo foi originalmente publicado em árabe pela rede Al-Quds Al-Arabi, em 25 de janeiro de 2021
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