Quando estudei a História do Brasil no ensino médio, me lembro da citação da Revolta dos Malês. Foi uma citação breve, algumas poucas linhas apenas, o que, obviamente, foi insuficiente para dar uma idéia justa sobre este movimento. Embora gostasse de História, naquela época não parei para buscar maiores informações sobre esta revolta. Talvez se eu soubesse que esta revolta foi um movimento eminentemente islâmico em pleno Império Brasileiro, talvez assim eu iria buscar maiores informações. Mas nem isso os livros e apostilas de História do Brasil, no ensino médio, foram capazes de citar. Prestei vestibular, entre na faculdade de Medicina, e depois fiz residência médica em Patologia, e até então nunca tinha tido a noção de que o Islam pudesse ter alguma importância na História do Brasil, e muito menos de que pudesse ter participação direta e efetiva num movimento histórico tão importante quanto a Revolta dos Malês. Tinha até então ouvido algumas informações desencontradas de um ou outro membro da comunidade islâmica de São Paulo sobre a influência que o Islam teve sobre os escravos negros da Bahia, mas nada muito consistente.
Foi necessária a passagem dezoito anos desde a minha conclusão do ensino médio para chegar a informações mais profundas sobre a Revolta dos Malês. O interessante é que isso foi obra do mais puro acaso. Entre os anos de 2017 e 2018 cheguei a morar cerca de seis meses em Aracaju-SE a trabalho (como médico patologista). Num feriado local em Dezembro de 2017, resolvi ir conhecer Salvador-BA, movido pelo meu amor à História. Fui principalmente para conhecer o centro histórico da primeira capital do Brasil. E não me arrependi. Foi uma viagem fantástica. Os meus passeios pelo centro histórico de Salvador me fizeram sentir na alma o espírito do Brasil Colônia e Império. Foi ali que comprei o livro Bahia de Todos os Santos, do Jorge Amado.
O livro Bahia de Todos os Santos, de Jorge Amado, é uma espécie de um guia histórico, geográfico, cultural, étnico, religioso e, até, culinário da Bahia. Nele, o autor baiano discorre numa prosa simples e cristalina sobre todos os aspectos que lhe são caros e importantes de sua querida Bahia. Fica nítido o amor que o literato baiano tem pela sua terra. Sem dúvida, é um livro envolvente e interessante de ler. Mas o que mais me chamou atenção e me marcou neste livro foi uma breve passagem que poderia ter passado batido se eu não fosse muçulmano. Ao falar dos personagens históricos da História da Bahia, Jorge Amado cita Pacífico Licutan, tido como líder revolucionário da Revolta dos Malês. Até aí, nada demais. O que mais me surpreendeu foram duas coisas que Jorge Amado levantou: 1) ele fez uma crítica acerba e feroz à historiografia tradicional brasileira, por ignorar praticamente de uma forma completa a Revolta dos Malês e omitir a sua importância na História do Brasil; 2) para este grande autor baiano, Pacífico Licutan (e não Tiradentes) deveria seria o herói máximo da História do Brasil! A historiografia tradicional do maior país católico da América Latina foi injusta com um verdadeiro herói muçulmana por dois motivos: o primeiro por ser de religião diferente da predominante no Brasil; o segundo por ser escravo negro.
De volta a Aracaju, voltei extasiado com minha viagem a Salvador. A êxtase devia-se ao contato tão próximo que tive com marcos vivos da História do Brasil, as igrejas históricas com seus altares banhados a ouro, o Pelourinho, o elevador Lacerda, a igreja do Bonfim, a primeira faculdade de Medicina do Brasil, a primeira Santa Casa do Brasil, as ruelas históricas, as casa no estilo colonial, o farol da Barra, a cidade alta, a cidade baixa, a história ainda viva em pleno século XXI, tudo isso me fez chegar a um sentimento único de felicidade. No entanto, o que mais me marcou nesta viagem foi a descoberta que fiz a respeito da Revolta dos Malês e do Pacífico Licutan no livro do Jorge Amado. Fiquei bastante admirado e surpreso como um autor de passado comunista, e declaradamente adepto do candomblé, pôde louvar um herói nacional muçulmano que foi relegado a segundo plano pela versão histórica oficial, por puro preconceito religioso e racismo. Apesar de ter crenças e ideologia diferentes da minha, Jorge Amado ganhou meu profundo respeito e admiração, devido a sua isenção e justiça.
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Foi, então, graças a Jorge Amado que pude ter noção da importância que a Revolta dos Malês e Pacífico Licutan e, por consequência, da importância do Islam na História do Brasil. É verdade que Amado não deu maiores detalhes históricos sobre esta revolta, mas só o fato de um autor da sua envergadura ter chamado a atenção para este evento histórico me abriu a mente para buscar maiores informações e detalhes a seu respeito. No entanto, só com estas informações e com esta vivência, consegui escrever um artigo em árabe intitulado: Revolução Islâmica do Brasil. Este artigo foi publicado no blog da Aljazeera, importante emissora e site do mundo árabe. Se a divulgação sobre esta revolta é escassa no Brasil, nos mundos árabes e muçulmano ela é quase inexistente. Fiquei feliz de poder chamar a atenção, na minha língua materna (o árabe), para este elo histórico que existe entre o Brasil e os mundos muçulmano e árabe.
Mais um acaso serviu para aprofundar meus conhecimentos a respeito desta revolta. Em Aracaju, pouco tempo depois da visita a Salvador, em visita a uma grande livraria da cidade, encontrei um verdadeiro tesouro: um livro de quase 600 páginas, cujo tema único é a Revolta dos Malês. O autor é João José Reis; o título da obra: Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835; a publicação é pela editora “Companhia das Letras”, edição de 2012. É um estudo histórico sério, baseado numa extensa bibliografia e fontes brasileiras e estrangeiras. O autor disseca a Revolta dos Malês pormenorizadamente. Não poderia ter encontrado uma referência melhor! Estudos e obras sérias existem, então, mesmo que muitas vezes são ignorados.
No início da década de 30 do século XIX, em pleno Brasil Império, o clima em Salvador estava favorável para a eclosão de rebeliões e revoluções. Além da crise econômica que assolava a Bahia, a comunidade negra de escravos havia chegado num grau de organização social e política que permitia tornar possível movimentos revolucionários. Os escravos negros da Bahia não pertenciam a um único grupo étnico-religioso. Pelo contrário, a população escrava baiana pertencia a um rico caldeirão étnico, cultural e religioso. Tinham os nagôs, que eram o grupo étnico predominante. Mas havia negros de outras nações também. Além dos predominantes idiomas iorubá e haussá, havia outros idiomas também. As religiões dos negros eram desde religiões africanas como o candomblé, até o Islam e o Catolicismo também. A presença da língua árabe deu-se pela forte presença do Islam entre os escravos, uma vez que o árabe é a língua sagrada desta religião monoteísta que surgiu na Arábia no século VII da era cristã.
Embora outras religiões tenham existido e convivido pacificamente lado a lado com o Islam na população negra dos escravos da Bahia, esta religião teve o papel preponderante na eclosão da mais importante rebelião escrava da História do Brasil. Isto deve-se a fatores intrínsecos e extrínsecos. Entre os fatores intrínsecos podemos citar a própria doutrina do Islam, em cujo livro sagrado, o Alcorão, há uma condenação explícita das injustiças sociais, políticas e de qualquer outra natureza, e há um espírito universal de igualdade entre os homens, ultrapassando diferenças raciais, étnicas e sociais. Outro fator intrínseco é a presença, dentro da comunidade malê, de homens (que mesmo escravizados), de cultura elevada, versados no conhecimento da religião islâmica e letrados na língua árabe. Estes homens eram os tais dos mestres religiosos islâmicos, que recebiam a nomenclatura de “alufá” nas línguas africanas. É o equivalente ao “sheikh” na língua árabe, título que recebem os clérigos muçulmanos. Os alufás eram os líderes da comunidade muçulmana negra e foram eles que tiveram o papel fundamental de protagonismo na Revolta dos Malês. Entre os fatores extrínsecos que contribuíram para o surgimento do movimento podemos citar a opressão com que a sociedade e o estado brasileiros tratavam a comunidade escrava muçulmana.
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A constituição imperial brasileira da época não permitia a liberdade religiosa. O catolicismo era a religião oficial do estado. Com exceção de igrejas e rituais católicos, outras práticas e templos religiosos eram banidos. Somente era permitida tal prática em âmbito doméstico. Os senhores dos escravos tinham uma tolerância variável em relação às práticas religiosas dos seus escravos. Alguns senhores eram mais tolerantes e permitiam que os escravos se dedicassem às suas práticas religiosas, outros eram mais severos e oprimiam as manifestações religiosas dos seus escravos.
Os fatores que desencadearam a Revolução dos Malês tiveram um longo período de gestação. São inegáveis o protagonismo religioso islâmico e o papel central dos mestres “alufás” neste movimento. No entanto, não podemos deixar de lado a importante e decisiva participação de fatores sociais, econômicos e políticos. O alto nível cultural dos mestres malês e de seus discípulos, com domínio das letras árabes, contrapunha-se muitas vezes ao analfabetismo e baixo nível cultural de muitos senhores. Este fato pode ter gerado um ressentimento e ciúmes senhorais, o que pode ter contribuído para o acirramento da opressão e perseguição.
Três eventos contribuíram para definir o estopim e a hora zero da rebelião. O primeiro foi a destruição pelas autoridades baianas de uma palhoça dos escravos construída na propriedade de um senhor de escravos inglês no bairro de Vitória, em Salvador. Esta palhoça servia como mesquita e foi destruída em novembro de 1834, ocasião na qual os escravos muçulmanos estavam celebrando o dia santo islâmico “Lailat Al- Israa wal Miraj”, que celebra a ascenção do profeta Mohammad (que as bênçãos e a paz de Deus estejam sobre ele) aos céus e à Mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém, em vida. O segundo evento foi a prisão injusta do Pacífico Licutan, também chamado “Bilal”, tido como o principal líder da comunidade escrava islâmica em Salvador. Esta prisão se deu na mesma época da destruição da palhoça-mesquita, e foi como penhora de dívida do senhor do Pacífico Licutan, um médico de sobrenome Varella. Mesmo necessitando, Varella recusou-se a alforriar Licutan na ocasião em que a comunidade Malê ofereceu-lhe o resgate. Esta atitude só pode ser explicada por puro orgulho senhoral e racial. O terceiro evento para e eclosão da rebelião foi o mês sagrado de Ramadan, mês do jejum para os muçulmanos. O dia da hora zero da rebelião, 25 de janeiro de 1835, coincidiu com uma das mais sagradas datas do calendário islâmico, a ” Lailat Al-Qadr”, traduzida como “Noite da Glória”, “Noite do Decreto”, “Noite do Destino”, a depender da forma como é interpretada a palavra “qadr” na língua árabe. Esta noite marca o início da revelação do Alcorão.
O objetivo da revolta dos Malês era tomar o poder em Salvador, libertar os escravos e instaurar um estado dominado por negros muçulmanos. Não se tratava de instaurar um califado, uma vez que escravos de outras religiões (principalmente candomblé) tiveram participação direta e indireta no movimento. Mas, sem dúvida, o objetivo era instaurar um estado na qual religião islâmica tivesse uma importante ascendência, com o papel central dos alufás.
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Mesmo com todo o cuidado que os alufás tiveram com o sigilo do seu movimento, divulgando a hora zero a poucos discípulos e militantes mais próximos, as intenções dos revoltosos acabaram vazando para as autoridades. Neste sentido, o movimento foi duramente reprimido e derrotado já no seu princípio, durando apenas algumas poucas horas. João José Reis cita sete alufás como sendo os principais articuladores e mentores do movimento: Ahuna, Pacífico Licutan, Luís Sanin, Manoel Calafate, Dandará, Nicobé e Dassalú. Os dois alufás que mais tiveram ascendência sobre os demais são: Ahuna e Pacífico Licutan. Algumas fontes históricas favorecem Ahuna como líder máximo “imam” do movimento. Mas a maior parte das fontes que consultei afirma que Pacífico Licutan, ou Bilal (como ele mesmo se apresentou ao juiz após a derrota do movimento) foi o imam dos revoltosos.
Apesar do seu fracasso e do seu rápido esmagamento pelas autoridades, a Revolta dos Malês continua sendo uma das mais importantes rebeliões de toda a História do Brasil e um dos mais importantes movimentos de libertação dos escravos. A sua importância advém de ter ocorrido numa importante cidade, como Salvador, e de ter sido liderada por homens com uma certa superioridade cultural e intelectual. E o mais importante para a comunidade muçulmana de hoje no Brasil, e para todo o mundo muçulmano, é motivo de orgulho termos o Islam como forte elemento e protagonista na luta pela libertação dos escravos, igualdade racial e justiça social.
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