Na última semana, quando publiquei a história de Assaf Kaplan, recentemente contratado pelo Partido Trabalhista britânico, a principal resposta que recebi nas redes – uma frequente objeção – seguia mais ou menos essa ideia: não existe ex-espião.
Embora sem muito êxito como agente de campanhas eleitorais pelo Partido Trabalhista israelense, Kaplan foi logo contratado por Keir Starmer, líder do Partido Trabalhista britânico.
Mas a parte mais chocante desta história não é apenas o fato de que Starmer contratou alguém de fora do Reino Unido para auxiliar sua campanha, ou sequer o fato de que esse alguém é israelense – dado que o trabalhismo israelense foi abertamente hostil a Jeremy Corbyn, último líder de sua contraparte britânica.
A principal revelação é que Kaplan exerceu o papel de oficial da inteligência israelense, não muito tempo atrás. Por quase cinco anos, Kaplan trabalhou para a chamada Unidade 8200, agência de ciberguerrilha do Exército de Israel.
A unidade representa um recurso vasto e disperso no arsenal das agressivas agências de espionagem de Israel. A maioria de seus milhares de recrutas são jovens, frequentemente radicalizados, contratados logo ao sair das universidades. São gastos milhões para produzir em massa agentes de inteligência especializados em alta tecnologia, a fim de suprir o crescimento das firmas privadas de mercenários e espiões israelenses.
Uma rede informal global de empresas de “inteligência”, com nomes como Black Cube e NSO Group, lucrou efetivamente de subsídios concedidos pelo governo de Israel, às custas do contribuinte, na forma de treinamento gratuito concedido a recrutas. Veteranos da Unidade 8200 lotam iniciativas de alta tecnologia no estado sionista e no exterior.
A própria Unidade 8200 é conhecida como uma agência de espionagem particularmente agressiva e insidiosa.
Em 2014, um grupo de delatores anônimos revelou detalhes do quão onipresente era o aparato de espionagem de Israel sobre a vida dos palestinos que residem na Cisjordânia ocupada.
“Quando me recrutei na unidade de inteligência, pensei que lidaria com prevenção ao terrorismo e que faria todo o necessário para proteger nossa segurança nacional”, escreveu um dos delatores. Ao contrário: “Descobri que muitas iniciativas israelenses sobre a questão palestina são destinadas a coisas não relacionadas à inteligência. Trabalhei muito em reunir informações sobre questões políticas … Tive problemas para aceitar algumas das coisas que fizemos”.
Outro delator reportou a coleta sistemática de informações “aparentemente irrelevantes do ponto de vista de segurança”. Prosseguiu: “Não tenho a consciência limpa por participar dessas atividades. Ao contrário do que eu esperava, nosso banco de dados incluíam não apenas informações de segurança, mas informações políticas e também pessoais”.
Um terceiro acrescentou: “O fato de que eram inocentes significava absolutamente nada para nós, no que se refere à forma como tratamos os alvos”.
Todo o tipo de detalhes pessoais, o mais particular possível, foram deliberadamente coletados para fins de chantagem, assédio, controle e mesmo assassinato. Sexualidade, doença, relações íntimas, adultério – tudo reunido em nome do avanço do regime sionista em seu projeto de supremacia judaica na Cisjordânia ocupada.
Israel criou o hábito de utilizar tais informações para coagir palestinos a colaborar com a ocupação.
Estas são as credenciais do recente contratado pelo partido supostamente socialista do Reino Unido, sobretudo proveniente de uma potência estrangeira hostil como Israel.
Aqui, retorno à principal crítica que recebi online por minha história (ao menos, por sua manchete): não existe ex-espião.
É uma crítica justa. Uma vez introduzido ao mundo opaco e altamente secreto da espionagem, é bastante improvável deixá-lo verdadeiramente. Sua experiência será carregada consigo pelo resto da vida. Jamais perderão os antigos contatos e sempre haverá chances de atraí-los novamente ao jogo, grampeados por oficiais de maior escalão.
Sobretudo, não há ex-espião quando este se encontra em uma posição de influência política – como dentro do escritório do líder do principal partido de oposição de uma importante potência estrangeira como o Reino Unido.
É claro, nada é definitivo. As pessoas podem mudar, como demonstram os delatores da Unidade 8200. Mas não há razão para crer em algum remoto arrependimento por parte de Kaplan. Muito ao contrário – nos últimos anos, Kaplan vangloriou-se de sua experiência como “veterano da Unidade 8200”, conforme registrado nas redes sociais.
A ironia do Partido Trabalhista vai além. Parte da nova descrição do trabalho de Kaplan é ajudar o partido a vencer eleições. Ainda assim, como vice-chefe de campanha do Partido Trabalhista israelense nas eleições gerais de abril de 2019, a organização histórica – que quase monopolizou a política israelense há décadas atrás – colapsou a patéticos seis assentos. Nas eleições de março próximo, pesquisas indicam uma derrota absoluta.
Deste modo, a devoção de Starmer ao que ele descreve como “sionismo sem qualificação” pode custá-lo a próxima eleição no Reino Unido.
São os membros do Partido Trabalhista quem mais são capazes de exigir respostas até então negadas por Kaplan e porta-vozes da cúpula partidária. O que quer um suposto partido socialista ao contratar um ex-espião israelense, para início de conversa? Este ex-oficial de inteligência é mesmo “ex”? Dito isso: Kaplan ainda tem contatos com a Unidade 8200 ou qualquer outro aparato do estado secreto de Israel?
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