A exigência, concessão ou negação de vistos para um país é um termômetro do equilíbrio nas relações entre as partes. Quando os regimes se assemelham e dialogam sem muitas desconfianças, o visto pode ser concedido facilmente ou mesmo dispensado. Quando um país é visto como ameaça potencial para outro, seus cidadãos pagam o preço – com a entrada dificultada por grande burocracia. Há também situações em que o risco não existe, mas sim uma subordinação entre uma e outra nação. Países mais poderosos exigem vistos – e geralmente rejeitam os pedidos – dos menos favorecidos, como se todos os visitantes quisessem assaltar seus empregos e contaminar sua cultura. Também fazem dos vistos fonte de renda – cobrando taxas de cada cidadão que faça a solicitação, algumas elevadas, como as cobradas pelo Canadá. E alguns países abrem suas portas sem contrapartida aos grandes que lhes criam barreiras , por mais que isso pareça esquisito.
Foi o caso do Brasil de Jair Bolsonaro que, em março de 2019, decidiu isentar cidadãos de EUA, Canadá, Japão e Austrália de visto, sem nada negociar em favor dos brasileiros, que enfrentam grande burocracia e crivos de acesso impeditivos. Pelo contrário, ele justificou a posição dos americanos em dificultar a entrada de brasileiros.
Falando em Washington, Bolsonaro disse à época que estava estendendo a mão aos vizinhos do norte, acrescentando desconfianças em relação aos turistas do Brasil. “A gente não vê nenhum americano indo para o Brasil para ganhar estabilidade via CLT, buscar emprego lá [no Brasil]. O contrário, para cá [Estados Unidos], existe”, afirmou Bolsonaro.
É um discurso bem diferente que fez o atual presidente da Bolívia, Luis Arce e seu gabinete de ministros, que assinaram um decreto impondo a exigência de vistos e avaliação pelos serviços de imigração dos pedidos de entrada de cidadãos dos Estados Unidos e Israel.
“Não existe suficiente e nem sólida justificativa” para liberar os norte-americanos e os israelenses , “sem que seus países outorguem similar benefício, seguindo o princípio da reciprocidade, para com os cidadãos bolivianos”.
Como os dois casos mostram, a concessão, dispensa, exigência ou negação de vistos também refletem graus de afinidade entre regimes e variam segundo as tensões internas dos países, provocadas por disputas entre tendências conservadoras ou democratizantes, elitistas ou populares.
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A história da Bolívia desde a independência é pontilhada de golpes de estado e, na última década, exemplifica essas flutuações muito bem, passando de governos alinhados com os Estados Unidos para o governo indígena e anticolonial de Evo Morales, expulso do poder no final de 2019 por um golpe de estado de curta duração, por sua vez encerrado com a eleição do atual presidente, Luis Arce.
As relações do país com o Estado de Israel atravessaram mais de 50 anos em harmonia, incluído o período dos governos militares na Bolívia, de 1964-1982. Cabe lembrar que, em 29 de novembro de 1947, a Assembleia-Geral da ONU aprovou o Plano da Partilha da Palestina, com 33 votos a favor e apenas treze contrários à proposta. Na América Latina, a Bolívia, ao lado do Brasil, Costa Rica, República Dominicana, Equador, Guatemala, Haiti, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela, da América Latina, deram seus votos favoráveis à criação do Estado de Israel.
Um acordo sobre vistos com Israel foi assinado em 17 de agosto de 1972, permitindo aos israelenses ingressar livremente na Bolívia, enquanto os próprios bolivianos viviam sob o regime de ferro do governo militar do coronel Hugo Banzer, alinhado às ditaduras repressoras instaladas na Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.
A amizade entre o Estado sionista e governos da América Latina ficou fragilizada à medida em que novos governos próximos a forças populares foram sendo eleitos no continente, mas o primeiro grande abalo ocorreu quando, em dezembro de 2008, Israel despejou sobre a Faixa de Gaza a operação Chumbo Fundido, deixando 1.387 palestinos mortos, a maioria civis não envolvidos nos conflitos e crianças.
A Bolívia, a esta altura, estava sob o governo do primeiro presidente indígena, Evo Morales, eleito com enorme apoio popular em em 22 de janeiro de 2006, e que reagiu cortando laços com o Estado sionista. Seguindo o mesmo gesto do colega venezuelano, Hugo Chavez, Evo Morales declarou que ” frente a estes graves atentados contra a vida e a humanidade, a Bolívia rompe relações diplomáticas com Israel”.
Ele comparou o massacre de Gaza a momentos de terrível memória da humanidade, lembrando que “os crimes do governo de Israel afetam a estabilidade e a paz mundial e fizeram o mundo retroceder à pior época dos crimes contra a humanidade desde a 2ª Guerra Mundial e, nos últimos anos, na ex-Iugoslávia e em Ruanda”.
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Em 2014, outro massacre de palestinos abalou as relações com a América Latina. A operação Margem Protetora deixou dois mil palestinos mortos e a Faixa de Gaza destruída, incluindo hospitais, escolas e instalações civis. Presidente em seu terceiro mandato, Evo Morales, acusou Israel de não respeitar “os princípios e propósitos da Carta das Nações Unidas, assim como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E não foi o único na América do Sul.
Em julho de 2014, em uma reunião privada da 46ª cúpula do Mercosul, na Venezuela, um comunicado contra os ataques à população palestina foi assinado por Cristina Kirchner, da Argentina, Dilma Rousseff, do Brasil, José Mujica, do Uruguai,Horacio Cartes, do Paraguai, Hugo Chavez, da Venezuela. Além de assinar o documento, o boliviano Evo Morales decidiu aplicar o critério de prevenção ao terrorismo aos turistas israelenses. A partir de 2015, passou a exigir visto e supervisão da entrada pela Direção Nacional de Migração.
“Significa que estamos declarando (Israel) como um Estado terrorista e que, portanto, tem que tomar as previsões para a entrada de seus cidadãos à Bolívia”, acrescentou o governante, justificando a obrigatoriedade imposta a esses visitantes de passar pelos seus postos de controle.
Impor constrangimentos a visitantes é useiro e vezeiro quando se trata de turistas e migrantes da América Latina em países do Norte. Vem no pacote a naturalização dos abusos, desprezo e sentimentos de superioridade em relação aos solicitantes de entrada nas situações de migração. Mexer com isso mexe também com a auto-estima de quem se submete ao processo.
No início de 2004, o então presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva decidiu levar o princípio da reciprocidade ao pé da letra, e resolveu dispensar aos visitantes estadunidenses o mesmo tratamento que seus compatriotas recebiam ao chegar nos Estados Unidos.
Os turistas com passaporte made in USA passaram a enfrentar fila para checagem de documentos e – ainda usual na época – coleta de impressões digitais em tinta preta após um cansativo interrogatório. Verdade ou não, dizia-se, na época, não sem as risadinhas de quem recontava o caso com sentimento de vingança, que os dados não eram do menor interesse dos serviços de segurança. Que depois das entrevistas da reciprocidade, e das filas obrigatórias para entrada e saída dos norte americanos tudo era descartado. Tratava-se apenas de reciprocidade no tratamento.
Em 2012 foi a vez do Brasil reagir ao modo espanhol de humilhar brasileiros – muitos deles mandados de volta do aeroporto madrileño sem explicações. Bastou devolver alguns visitantes espanhóis para Madri que as conversas foram retomadas em outro nível diplomático..
O Brasil barrou 31 espanhóis no primeiro mês após exigir destes os mesmos procedimentos, comprovações e paciência imposta aos brasileiros.
Tais providências duraram apenas o tempo de produzir efeitos diplomáticos e facilitar o trânsito de brasileiros fora do país. Possivelmente hoje o tratamento dispensado a brasileiros seja ainda mais rigoroso e constrangedor, dadas as políticas do atual governo de romper com a tradição da reciprocidade e abrir as portas do Brasil e manifestar desconfiança em relação aos seus cidadãos no exterior. Mas quando um país como a Bolívia mostra outro caminho, o vai e vem da política de vistos reflete as trocas de regime da última década.
A Bolívia adota três níveis de controle de visitantes. O nível 1 é dos amigos, que entram livremente, o nível 2 dependem de vistos, e o nível 3 exigem vistos e checagem a cargo do serviço de imigração por ameaças à segurança – um check-point para casos graves associados a práticas de terrorismo.
Em 2015, Evo Morales impôs o controle de nível 3 aos norte-americanos e israelenses.
Após o golpe de 2019, a presidenta autoproclamada Jeanine Áñez, alinhada aos Estados Unidos e Israel, revogou o decreto de Evo e anulou a exigência do visto aos dois países, recolocando os dois países no nivel 1 de controle.
O meteórico governo de Áñez foi sucedido pelo atual presidente, Luis Arce, em eleições democráticas, que em janeiro deste ano assinou o decreto 4460 que revogou o decreto do período pós-golpe, que por sua vez revogava o decreto de Morales.
“É revogado o Decreto Supremo N° 4107, de 9 de dezembro de 2019. Se dispõe a vigência do Decreto Supremo N° 2339, de 22 de abril de 2015”, diz o decreto de apenas um artigo, que recolocou os dois países no nível 3.
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No Brasil, a reciprocidade como regra foi derrubada juntamente com o impeachment da presidenta eleita Dilma Roussef, em 2016. Com uma nova Lei de Migração, o governo tampão de Michel Temer (MDB), decidiu que “a simplificação e a dispensa recíproca de visto ou de cobrança de taxas e emolumentos consulares por seu processamento poderão ser definidas por comunicação diplomática.”
Era um modo elegante de dispensar a exigência de equilíbrio entre as relações, algo que Bolsonaro consolidou. A Bolívia, por sua vez, indica que os vistos são mais do que burocracia. Refletem o grau de soberania e auto-estima de cada nação.
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